No dia em que Nuno Teotónio Pereira faz 90 anos

«Estou velho, estou a chegar aos 90 anos. Há órgãos que me estão a falhar. Um deles é a memória, que se está a desfazer como pó, o que me causa um certo sofrimento. (…) Além da perda da visão. Estou emocionado, mas estou muito contente, porque esta sessão, tendo sido anunciada como de homenagem à minha pessoa e não deixando de o ser, fez também justiça a todos aqueles que eu conheci na luta contra a ditadura, naqueles anos difíceis. (…) Os dias de hoje, e porventura os de amanhã, vão exigir acções múltiplas, fortes, convictas, e por vezes decisivas, para que o mundo seja melhor para todos (…) – Disse na sessão de homenagem que um grupo de amigos lhe prestou há cerca de um ano.

Nuno Teotónio Pereira é um dos três únicos sócios honorários do NAM.

Foi fundador do Movimento Cívico Não Apaguem a Memória e aqui batalhou com ideias, propostas e acção, enquanto não lhe faltaram as forças físicas. A luta contra a Ditadura fascista deve-lhe muito. Portugal também. Extraordinário arquitecto, foi pioneiro na história da arquitectura contemporânea portuguesa. É um exemplo de cidadania persistente e de democrata dialogante e com abertura de espírito.

No dia em que faz 90 anos, a Direcção do NAM presta-lhe novamente homenagem, e agradece à nossa amiga Joana Lopes o texto que transcrevemos.

 A Direcção do NAM
30 de Janeiro de 2012

Nasceu em 30 de Janeiro de 1922, numa família burguesa, monárquica, católica e afecta ao salazarismo, facto que viria a marcá-lo profundamente na primeira parte da vida.

Arquitecto de mérito reconhecidíssimo, mestre de gerações que com ele colaboraram num quase mítico atelier de Lisboa, publicamente louvado e premiado em sessenta anos de actividade profissional dedicada à «arquitectura e cidadania»; a partir do fim dos anos 50, também militante incansável na oposição à ditadura, preso mais do que uma vez pela PIDE, torturado e libertado de Caxias no dia seguinte à revolução de Abril – é esta a pessoa de Nuno Teotónio Pereira, que importa hoje referir, embora muito resumidamente, sobretudo para os mais novos e para os que não se cruzaram com ele na sua longa vida.

O seu percurso foi muito especial e pouco comum. Com 14 anos, viveu entusiasticamente a criação da Mocidade Portuguesa, nela fez uma carreira fulgurante, envergou orgulhosamente a farda em desfiles na Avenida da Liberdade e não evitou a saudação fascista – faz questão de não o esconder. Nesse mesmo ano de 1936, seguiu apaixonadamente o avanço das tropas franquistas no início da Guerra Civil de Espanha e  envolveu-se na organização de uma grande coluna de camiões que levou até Sevilha mantimentos para as mesmas.

A grande viragem sem retorno começou durante a II Guerra Mundial, por influência do pai, profundamente anglófilo, mas viria a concretizar-se, decisivamente, durante a campanha de Humberto Delgado, em 1958. Não só por todo o ambiente criado em torno desta, mas também por uma grande influência de sua mulher Natália e de Francisco Lino Neto, a quem Nuno Teotónio Pereira afirma ter ficado a dever a sua «conversão». E é já com entusiasmo que segue a vitória de Fidel de Castro, em Cuba, em 1959…

A partir de então, e até ao fim da ditadura, foram anos de uma militância intensíssima, sobretudo nos diversos campos de actividade dos que vieram a ser designados como «católicos progressistas». Desde os primeiros anos da década de 60 e até ao 25 de Abril, a oposição dos católicos ao regime político e à guerra colonial, e a revolta crescente que manifestaram em relação às posições oficiais da Igreja portuguesa, deram origem a plataformas de luta que adoptaram estruturas diversas, mais ou menos maleáveis conforme os casos, mas que envolveram, directa ou indirectamente, milhares de pessoas. Nessa teia de iniciativas e instituições, houve quem tivesse um papel especial na dinamização e agilização de contactos e na concretização de acções conjuntas. Vários nomes podiam ser citados, mas, se fosse necessário escolher apenas um, seria sem dúvida o de Nuno Teotónio Pereira. Com a sua simplicidade desconcertante, tenacidade férrea e pragmatismo à prova de fogo, deitava as sementes, estabelecia todas as pontes possíveis e acompanhava detalhadamente as realizações.

Qualquer lista de iniciativas peca por (grande) defeito, mas citem-se, a título de meros exemplos, a criação do primeiro jornal clandestino que difundiu notícias sobre a guerra colonial (Direito à Informação, 1963), a fundação da cooperativa Pragma (1964), o papel preponderante nas vigílias pela paz (igreja de S. Domingos, 1969, e capela do Rato, 1972), os cadernos GEDOC (1969), a participação na Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (1970), o Boletim Anti-Colonial (1972). E muitas, muitas outras realizações que, sem ele, nunca teriam existido ou ficariam aquém da amplitude que tiveram.

Em finais de 1973, foi preso pela última vez, durissimamente torturado pela PIDE e só o 25 de Abril o restituiu à liberdade. Foi depois um dos fundadores do MES, nele se manteve até à sua extinção e nunca deixou de ter, desde então, uma participação cívica muito activa, nomeadamente a nível da cidade de Lisboa.

Há pouco menos de três anos, a vida deu-lhe um golpe cruel: cegou, mais ou menos repentinamente. Mas continuou preocupado com tudo e com todos.

Há cerca de um ano, a pretexto do lançamento de um livro sobre uma cooperativa lançada no Porto nos anos 60 (a Confronto), um grupo de amigos decidiu prestar-lhe uma espécie de homenagem e foi sem surpresa que viram encher-se um auditório com várias centenas de pessoas. Para todas elas, o Nuno foi – e é – uma referência, um marco de vida e objecto de uma enorme gratidão.

A encerrar a referida sessão afirmou: «Estou velho, estou a chegar aos 90 anos. Há órgãos que me estão a falhar. Um deles é a memória, que se está a desfazer como pó, o que me causa um certo sofrimento. (…) Além da perda da visão. Estou emocionado, mas estou muito contente, porque esta sessão, tendo sido anunciada como de homenagem à minha pessoa e não deixando de o ser, fez também justiça a todos aqueles que eu conheci na luta contra a ditadura, naqueles anos difíceis. (…) Os dias de hoje, e porventura os de amanhã, vão exigir acções múltiplas, fortes, convictas. e por vezes decisivas, para que o mundo seja melhor para todos. (…) Muito obrigado.»

Joana Lopes
30 de Janeiro de 2012