[ Aqui fica o relato que o nosso companheiro António Melo fez da discussão do dia 30 e que espelha o que por lá se passou. ]
A Petição apreciada na AR pelos deputados
A votação formal ainda não tem data marcada, mas as intervenções feitas pelas diversas bancadas parlamentares, ao fim da manhã da passada sexta-feira, deixam perceber que a Petição apresentada pelo Movimento Cívico Não Apaguem a Memória! vai ter um acolhimento esmagadoramente favorável, quiçá unânime por parte do parlamento.
Coube ao deputado socialista João Soares iniciar as intervenções e fê-lo começando por elogiar o autor do parecer que a Petição do Movimento mereceu à comissão de Direitos, Liberdades e Garantias. O trabalho do deputado Marques Júnior, dele se trata, à semelhança da Petição, teve referências elogiosas de todos os intervenientes, mesmo de Zita Seabra (PSD), a única a emitir reservas quanto à oportunidade política da celebração e preservação da memória da resistência, para lá do círculo reservado dos historiadores.
Ao longo das 25 páginas do parecer, Marques Júnior retraça, além do processo que deu origem à Petição, a própria história do Movimento, comentando com pormenor os seus objectivos. Nas conclusões, em que trata das recomendações ao Governo, realça a importância do apoio “a programas de musealização”, dando como exemplo “a constituição de um Museu da Liberdade e da Resistência”, provavelmente na antiga prisão do Aljube, no centro histórico de Lisboa, bem como “a constituição de Roteiro nacional dos lugares e de edifícios”, que têm um valor histórico e simbólico no combate da resistência antifascista.
De resto, convém desde já assinalá-lo, o próprio ministro Augusto Santos Silva, na intervenção final, acolheu estas recomendações e falou da importância da sua realização mesmo em termos de cumprimento da acção governativa.
Voltando ao deputado João Soares, este fez uma breve evocação do que foi a resistência, focando particularmente a repressão que se abateu sobre os seus militantes, mencionando vários deputados que tinham sofrido a tortura da PIDE/DGS e conhecido as prisões do Estado Novo. Neste ponto, endereçou uma saudação especial a um dos membros do Movimento, que na galeria dos visitantes assistia ao debate parlamentar – Edmundo Pedro.
A presença deste antigo tarrafalista foi também assinalada pelo deputado Fernando Rosas, do Bloco de Esquerda, e, mais tarde, pelo ministro, quando recordou à câmara de deputados ali presente, que sem a coragem e determinação de resistentes como Edmundo Pedro, não seria possível eles lá estarem.
O deputado comunista Bernardino Soares, na intervenção que se seguiu, evidenciou o papel do PCP na resistência ao Estado Novo e sublinhou que foi o único partido que permaneceu íntegro, sem desfalecer, na causa da liberdade “durante os 48 anos da longa noite fascista”. Pôs em evidência as tentativas recentes, vindas de diversos sectores, de “branqueamento” desse tempo ditatorial e, por isso, enfatizou a importância de ao nível dos programas de ensino se desenvolver uma intervenção mais ousada e decidida, para que a juventude saiba o que foi a censura, a repressão policial, a miséria social desse período da história portuguesa do século XX.
Nota discordante de Zita Seabra
A única nota discordante, mais no tom do que na substância, no conjunto das declarações parlamentares, veio da deputada Zita Seabra, em representação do PSD. Depois de um período inicial em que louvou as “meritórias intenções” do Movimento bem como do parecer de Resolução em análise, acrescentou um “no entanto…”. A partir daí derivou para um registo subjectivo, de onde ressaltou a sua experiência como resistente clandestina na luta pelo derrube do Estado Novo, quando era militante comunista, para concluir que nessa matéria ninguém lhe poderia dar lições de heroísmo. Passou daí para um registo de reflexão pessoal sobre o exercício da memória, para concluir que era muito errado essa memória ser utilizada como “arma de arremesso político” pela esquerda contra a direita. Por tudo isso, ela entendia que as questões relacionadas coma memória histórica deviam confinar-se ao âmbito de estudo dos historiadores, mas sem explicar qual seria então o papel desses estudos e a quem eles se deviam dirigir.
O deputado centrista João Rebelo, que se lhe seguiu, também ele algo perplexo com esta intervenção sem conclusão, abriu com uma dupla mensagem de congratulação: para o Movimento e para a deputado Marques Júnior, autor do parecer, como se disse. Deixou claro que este parecer merecia o seu apreço pela maneira sóbria e factual com que fora redigido, não deixando de manifestar a sua discordância, em contrapartida, por algumas formulações da Petição, em concreto a de considerar que a preservação da memória podia ser impeditiva da construção de um novo edifício na Rua António Maria Cardoso, no espaço onde, durante algum tempo e num certo espaço existiu a sede da polícia política do Estado Novo. Mas, no conjunto, aceitou os princípios que presidem à acção do Movimento, sobretudo enquanto escola de democracia “e se tenha a noção de que a história não é propriedade de ninguém”.
Fernando Rosas, deputado e historiador, fez uma saudação à delegação do Movimento, presente nas galerias, com uma especial distinção para Edmundo Pedro. Falou do projecto que o Movimento veio suscitar nas suas várias vertentes de investigação, preservação e divulgação da resistência antifascista e do seu do papel libertador, social e político na sociedade portuguesa. Acrescentou que esse projecto mereceria, provavelmente, mais uma Lei-quadro do que uma simples recomendação, mas não deixou de apoiar o parecer de Resolução que estava em discussão.
O deputado dos “Verdes”, Francisco Madeira Lopes, afirmou o seu apoio de princípio à resolução e pôs a tónica na responsabilidade que cabe ao parlamento e ao governo na concretização dos objectivos que constam do parecer elaborado por Marques Júnior, na preservação da memória da resistência à ditadura.
O ministro Augusto Santos Silva encerrou o debate com uma intervenção de franco e favorável acolhimento da Resolução e da Petição. Esta última referência serviu-lhe para a situar historicamente na vida do Movimento, nascido com o dia da indignação – 5 de Outubro de 2005. Foi nesse dia que um grupo de cidadãos se reuniu na Rua António Maria Cardoso, em protesto contra o desaparecimento, sem qualquer registo de inscrição, da antiga sede da tenebrosa PIDE, substituída por um condomínio de luxo.
Numa intervenção que foi de resposta – senão de esclarecimento – à de Zita Seabra, explicou que essa indignação inicial dera lugar a uma reflexão sobre as intervenções necessárias junto dos poderes públicos e da sociedade em geral, para que a história dos que combateram a ditadura, entre os quais a própria deputada, não passasse de letra morta em livros de leitura distante. Pôs a tónica na necessária luta que a democracia tem em permanência contra a ditadura e lançou sobre os deputados de um parlamento democrático a responsabilidade dessa tarefa. “Sem o combate contra ditadura” a Assembleia da República não seria possível, recordou o ministro. Santos Silva advertiu contra o perigo de se generalizar uma experiência pessoal, com o que ela tem de subjectivo e dramático, arrastando nela juízos preconceituosos e datados por determinada conjuntura, que podem prejudicar o apoio a um projecto com o qual até se concorda.
Santos Silva não foi o único a interpelar, mesmo se indirectamente, a deputada Zita Seabra. Já antes Fernando Rosas, pegando na ideia de confinar o estudo da memória aos historiadores, se pronunciara sobre o erro de se defender uma “história neutra”, o que de algum modo seria defender um modelo de história oficial, que exclui o útil confronto de uma historiografia pluralista nas suas abordagens e perspectivas.
No final, ficou a impressão de que a intervenção da deputada Zita Seabra fora mais um ajuste de contas com fantasmas do seu passado político, do que uma posição do seu actual partido para com a Resolução, que se espera seja votada, sem abstenções, por todas as bancadas parlamentares.