Aqui fica o relato do jornalista José Teles sobre a visita ao Posto de Comando do MFA:
“Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas… – uma memória discreta, como deve ser. Mas insuficiente.
Estivemos lá. Lá onde o 25 de Abril se coordenou e decidiu. Regimento de Engenharia 1, na Pontinha, ao tempo uma discreta arrecadação militar pouco utilizada no meio do aquartelamento, hoje pouco mais do que isso, como vamos contar. Mas foi a “sala de operações” do movimento que derrubou a Ditadura, já lá vão 33 anos. Um local para lembrar o sucesso da Revolução dos Cravos. Para gozo e fruição do Povo como nós.
Fomos umas 30 pessoas a responder à chamada do Movimento Não Apaguem a Memória! este sábado 12 de Maio, “o mês das rosas, diz-se”. E não éramos muitos? Pois sim: 30 paisanos e paisanas, juntos, à porta de armas de um estabelecimento militar – antes do 25 de Abril podia ser considerado subversivo e dar direito a carga policial.
“Visita inopinada” – assim a classificou Miguel Ferreira, dos serviços culturais da Câmara de Odivelas, que nos recebeu e serviu de cicerone, juntamente com a sua colaboradora Ana Paula. “Inopinada”, mas só por contraposição a “visita regular”, que decorre sempre no 4º domingo de cada mês, basta contactar de véspera a Divisão de Cultura e Património Cultural daquele município, tel: 219346100, tome nota e vá.
De facto é a Câmara de Odivelas que, como Núcleo Museológico, ergueu, preservou e mantém vivo aquele espaço (em colaboração com o Regimento de Engenharia 1, como tinha de ser), onde funcionou entre 24 e 26 de Abril de 1974 o Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas, que “inscreveu assim a Pontinha e o concelho de Odivelas na mais bela página da História de Portugal do Século XX”. Diz o folheto distribuído aos visitantes.
Um investimento apetecível para promotores imobiliários?
Sabíamos pelo livro de Otelo, “Alvorada em Abril”, que o Posto de Comando funcionou num barracão pré-fabricado, discreto. Constatámos que passa completamente despercebido, no meio de um aquartelamento que se estende por uma boa dezena de hectares (é bastante maior do que parece a quem passa na rua).
Soubemos, por informações no local, que o Exército terá a intenção de completar a desactivação do quartel da Pontinha e alienar aqueles terrenos que deverão valer uma pipa de massa. Qual vai ser o destino da arrecadação que serviu de PC do MFA no 25 de Abril? Terá de ser declarada previamente “monumento nacional”, impondo-se aos eventuais adquirentes dos terrenos o ónus de manter o Núcleo Museológico como está?
Monumento nacional seria talvez um exagero que o edifício não tem dignidade
arquitectónica para tanto. Mas pode ser declarado imóvel de interesse público, para o que fazem falta decisões de duas câmaras – dizem-nos. Ou pelo menos de interesse municipal. Para que, também aqui, “não se apague a memória” da Revolução.
Uma memória discreta, demasiado discreta, em nosso entender, do que foi “aquele dia inicial, inteiro e limpo”. Prometia mais a exposição de entrada lembrando os momentos cruciais daqueles dois dias:
24ABR74, 22H55: a primeira senha, depois de um corte na emissão.
Transmitida nos Emissores Associados de Lisboa, uma rádio local, por João Paulo Diniz, que disse textualmente:
Faltam cinco minutos para as 23 horas. Convosco Paulo de Carvalho com o Eurofestival de 74: «E depois do Adeus”.
Diz Otelo que “a voz do cançonetista encheu a noite”:
Quis saber quem sou
O que faço aqui…
Diz Otelo, no livro da Alvorada em Abril, publicado na Bertrand, em 1977. Aqui o que temos é a foto de Paulo Carvalho, menino e moço. Bonita. Mas insuficiente.
Esperávamos a gravação da cantiga na íntegra e a apresentação nervosa que dela fez o João Paulo Diniz. Esperávamos sobretudo um registo da emoção com que aquele tiro de partida das operações militares para o derrube do Regime foi recebido na Pontinha. Uma memória descritiva, qualquer coisa do género, inspirada por exemplo no livro de Otelo:
O tenente coronel Fisher Lopes Pires sintoniza o seu “excelente transistor Philips” nos Emissores Associados de Lisboa. Juntam-se todos “excitadíssimos” junto do aparelho. De repente, um silêncio longo, falhou a emissão.
– O que terá havido? Não me digam que “abafaram” o João Paulo Diniz?
Era só uma avaria técnica momentânea. Pontualmente, à hora combinada, a voz do locutor anuncia a senha da Revolução: Faltam cinco minutos…
– Alea jacta est – proclama Otelo. “Como César ao atravessar o Rubicão”. Afirma o próprio no livro.
25ABR74, 00H20: também temos uma bela foto de Zeca Afonso, também temos a transcrição da primeira estrofe do poema que serviu de sinal definitivo para o avanço das tropas pelo País inteiro:
Grândola, vila morena,
Terra da fraternidade,
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade.
Lindo, um poema digno dos deuses. Mas onde pára a gravação? Onde pára a voz de Leite de Vasconcelos, empolgado e receoso, a ler a quadra, antes de pôr a agulha no acetato? Como ecoam no posto de comando os passos cadenciados da tropa na calçada, que vem aí terminar com a ditadura, seguindo a voz do poeta-cantor, que parece ter feito aquela música, aquela letra, aquele acompanhamento, aquela gravação, especialmente, para “um dia assim”! Como a emoção no grupo do posto de comando embarga as vozes, como a cantiga é ouvida num silêncio denso! No filme de Maria de Medeiros sobre o 25 de Abril este é um momento de êxtase!
25ABR74, das 03H05 às 04H20: temos a RTP connosco, o Mónaco caiu. México conquistado sem incidentes – é o Rádio Clube ocupado, já temos emissor. É nosso o Canadá – o Quartel-General passa para os revoltosos. Nova Iorque nas mãos do Povo – é o Aeroporto da Portela sob controlo.
A exposição refere os códigos e os nomes dos locais sucessivamente ocupados, mas onde estão os diálogos trocados, com o Maior de Lima 5 (Teófilo Bento), o portavoz do Grupo Dez (Santos Coelho), os textos na parede, para a posteridade, como nas antigas repúblicas coimbrãs, como no Alcazar de Toledo, a celebrar ainda hoje o alegado heroísmo dos franquistas, que esses – para o que der e vier – souberam fazer a coisa.
Onde estão os registos de episódios como este?
RE 1, 25ABR74, 03H15: Palavra de honra? Isso é porreiro, pá!
Exultante pela facilidade da ocupação da Emissora Nacional, o capitão Frederico Morais, do CTSC, liga para o PC:
– Daqui Maior de Lima 18. Informo ocupámos Tóquio sem qualquer incidente.
– OK. Parabéns e um abraço.
Do outro lado, o cap Morais não pousa o telefone, hesita e insiste:
– Alô, Óscar. Peço informe se estamos sós ou se já houve outras ocupações.
– Afirmativo quanto à segunda parte da pergunta. Não estão isolados: Mónaco e México já caíram nas nossas mãos.
A “seca linguagem das transmissões militares” cede perante a boa notícia:
– Eh pá! Palavra de honra? Isso é porreiro, pá!
– Ok, aguentem firme. Está tudo a correr bem.
E sobretudo como este? Ouçam bem (ah se houvesse gravação, uma reconstituição, o texto deste diálogo, nas paredes nuas do auditório, por exemplo!):
RE 1, 25ABR74, 03H16:
Está tudo sossegado, senhor ministro…
Os homens do MFA na EPTm interceptam e transmitem para o posto de comando esta conversa entre Silva e Cunha, ministro da Defesa, e o general Andrade e Silva, do Exército, o celebrado vencedor do golpe das Caldas um mês antes.
– Está, senhor general? Daqui ministro da Defesa.
– Como está, senhor ministro?
– Então ainda a trabalhar a uma hora destas?
– É verdade. É que tenho de me deslocar ao Alentejo e não estarei cá todo o dia, pelo que estou aqui a arrumar os papéis.
– Alguma coisa no Alentejo?
– Não, nada de importante. Mas interessa-me sobretudo ir até Beja, onde vou assistir a uma transmissão de comando e inspeccionar a Companhia de Ordem Pública. O comandante que lá está é muito amigo do homem do monóculo, a quem telefona muitas vezes. Por isso mandei mobilizá-lo para o Ultramar e coloquei lá outro de confiança, que hoje toma posse.
– Óptimo. E como é que está a situação? Corre tudo bem?
– A situação está sem alteração e perfeitamente sob controlo. Peço-lhe que não se preocupe, pois está tudo sossegado e não há qualquer problema em qualquer ponto do País. Se houvesse alguma coisa, era evidente que eu não ia hoje ao Alentejo, não acha?
– Claro, claro, só perguntei para ir para casa dormir descansado. Então não o maço mais. Boa viagem pelo Alentejo.
Comentário de Otelo: “ Eram três horas e dezasseis minutos. Tínhamos na mão três objectivos fundamentais para a informação pública e o QG/RMP, raras eram as unidades do Exército que em todo o território não rolavam na estrada ou estavam prestes a fazê-lo, havia vários quartéis onde os comandantes se encontravam detidos ou tinham a sua acção neutralizada, e… os mais altos fresponsáveis militres do velho regime preparavam-se para dormir, tranquilos, as horas a que se sentiam com direito!”
E por aí adiante. Também falta na exposição a transcrição dos telefonemas de Salgueiro Maia desde as 06H00 da manhã no Terreiro do Paço, para o comando e vice-versa, que igualmente merecem honras de parede. Também falta o delicioso telefonema do cap. Luis Macedo ao princípio da manhã, do gabinete do Ministro do Exército para o Posto de Comando, a contar como o Ministro se escapara por um buraco na parede. Também faltam… as diligências de Vítor Crespo, no posto de comando, em contacto permanente com Contreiras, instalado na cave do Ministério da Marinha, a evitar que a fragata Gago Coutinho, comandada por Seixas Louçã, bombardeie o Terreiro do Paço, como lhe ordena o primeiro ministro Marcelo Caetano, a partir do Quartel do Carmo.
Ainda assim o que está vale uma visita – palavra de repórter! A sala de operações tem em tamanho natural as estátuas dos “sete magníficos”, em cera e em acrilíco, nos locais que ocuparam naquela noite:
· Otelo Saraiva de Carvalho, major de artilharia, no seu blusão de cabedal, de pé, junto ao mapa de 1973 do Automóvel Clube de Portugal – “especial para sócios” – onde ia colocando as bandeirinhas assinalando os avanços de cada coluna militar pelas estradas do País.
· Amadeu Garcia dos Santos, tenente-coronel de transmissões, sozinho numa mesa, às voltas com os seus rádios, antenas e telefones.
· Fisher Lopes Pires, tenente-coronel de engenharia, com um telefone de discar, como eram todos naquele tempo, sempre com o cachimbo na boca, dizem os cronistas.
· Sanches Osório, major de engenharia, enviado por Vítor Alves como representante do Estado-Maior naquele grupo de comando, à esquerda de Lopes Pires, tomando notas.
· Luís Macedo, capitão de engenharia, responsável pela segurança do edifício, que protegeu com um perfeito “black-out”, com cobertores nas janelas, e organizara rondas permanentes no exterior: de pé, na única estátua de cera.
· Hugo dos Santos, major de transmissões, sozinho, ao lado, numa pequena mesa, com vários rádios.
· Vítor Crespo, capitão de fragata, de pé junto à porta do fundo, em uniforme de gala, azul-escuro, com botões dourados e o boné branco dos dias de festa
Junto às paredes, armários, tão austeros como as mesas, com brochuras e encadernações, de ordens de serviço do quartel e outros documentos.
No pavilhão há ainda um pequeno centro de documentação e um gabinete de imagens, presentemente com uma exposição de Fernando Lopes Graça. E há também um auditório, inaugurado por Jorge Sampaio, “equipado com modernos meios audiovisuais”. Com capacidade para 70 pessoas e “preparado para a realização de conferências e pequenos espectáculos”. Diz o folheto.
Nele podemos ver um filme, com imagens de arquivo da RTP, vistas milhares de vezes, sempre as mesmas e não há outras, com o Povo em cima das árvores naquele dia de Abril, no Largo do Carmo. Alguns membros do nosso grupo de visitantes também estiveram lá. E alguns extractos da reconstituição histórica, com actores profissionais, levada a cabo pela SIC, no filme “A Hora da Liberdade”, há poucos anos.”
José Teles
Resta referir que, no final da visita, Raimundo Narciso fez uma interessante exposição sobre a vida na clandestinidade que viveu durante muitos anos, onde se encontrava no dia 25 de Abril, precisamente no que é hoje o Concelho de Odivelas,
e Jorge Martins, em nome do Movimento, referiu os objectivos inerentes ao espaço visitado: Preservar a Memória do local em que na noite de 24 para 25 de Abril de 1974 foram dadas as directivas para que a Revolução fosse um êxito.