Por um Museu da Resistência (O Primeiro de Janeiro, 2006/07/17)

Retirei da Internet, do site do jornal “O Primeiro de Janeiro” de 17/07/2006, o artigo abaixo.

Por um “Museu da Resistência”

O movimento “Não apaguem a memória!” organizou uma visita ao Museu Militar, antiga sede da PIDE do Porto, e que gostariam viesse a ser o Museu da Resistência. Ex-presos políticos e director do museu da Rua do Heroísmo foram os cícerones.
Filinto Melo

Quem desce as escadas do Museu Militar apercebe-se de iluminuras de outros tempos, outras guerras e outros combates. Não sabendo, está a descer as mesmas escadas que, antes do 25 de Abril, eram percorridas por pessoas que acabavam de sair de sessões de tortura também lembram outros tempos, quase medievais, por recusarem outras guerras, as das antigas colónias, e por estarem num combate, contra o regime.

O encenador João Luiz não se lembra de descer as escadas. “Não tenho nenhuma memória da saída da sala de tortura [no último andar do edifício oitocentista da Rua do Heroísmo] nem das escadas. Tenho memória da subida, isso sim”. O director da companhia Pé de Vento foi um dos ex-presos políticos participantes, sábado, na visita de estudo promovida pelo movimento “Não apaguem a memória!” ao actual Museu Militar do Porto, antiga sede da PIDE na cidade.

Ao longo de mais de duas horas e meia, foram percorridos os recantos do edifício e os seus anexos. “Ali eram as camaratas”, “aqui era onde fotografavam os que chegavam”, “olha o gabinete do médico, que não era médico na era nada”, “subir estas escadas era terrível”, “… as salas de tortura” – frases que ajudavam a relembrar histórias e situações, actos e figuras que fazem parte da história ainda viva daquele edifício, adquirido para o Estado em 1948 para vir a ser a sede da PVDE, depois PIDE. Um palacete que o movimento gostaria de ver como Museu da Resistência, para lembrar o que fazia o regime ditatorial deposto a 25 de Abril de 1974.

Além de João Luiz outros resistentes, ex-presos políticos, desvelaram memórias. Jorge Araújo, um dos que conseguiu fugir da PIDE do Porto (ver outra página), explicou que uma das piores práticas era o chamado carrossel. Consistia em ter um grupo de torturadores a rodear o preso, numa das salas de tortura, e espancá-lo alternadamente, sem o deixar cair. Também em ficar de pé consistia outra das torturas mais utilizadas, a da estátua, que visava derrotar os detidos por cansaço, obrigando-os a ficar em pé dias inteiros. Muitas vezes a estátua era acompanhada da tortura do sono, ou seja, não se permitia que o preso adormecesse. “Havia também a Régua… acompanhada da tortura do sono ou da estátua, consistia em descer com a régua [de madeira] sobre o nariz do preso quando ele, cansado, caía para a frente”, contou Jorge Araújo.

Depois das sessões de tortura dava-se o regresso à cave, para as celas individuais ou em camaratas. “Sempre acompanhado pelos guardas, para que os presos atordoados pela tortura não caíssem para o fosso ou se tentassem suicidar”, referiu Jorge Batista, outro dos ex-presos políticos presente.

——————————

A saber

As fugas desesperadas

Os ex-presos percebem as tentativas de suicídio, porque quando se saía da sessão de tortura, havia a ansiedade da “próxima vez”. Houve também casos de “presos que partiam pernas nas camaratas” para ir ao hospital e evitar a sessão seguinte.

“Pisco”, o último a sair

Jorge Carvalho, nome de guerra “Pisco”, foi o último preso político a deixar a cadeia. Conforme contou ao JANEIRO, além do processo político tinha contra si um processo-crime pois tinha agredido “uns pides”. Pisco, que ainda guarda uma série de documentos que ajudariam a criar o Museu da Resistência, agrediu também o “médico”, que depois recusou consultar.

As camaratas da PVDE

A “pevide” como era tratada pela oposição política durante os primeiros anos do regime, ainda está presente hoje no Museu Militar. Pelo menos a sua sigla. No armazém dos fundos, onde eram na altura da PIDE as camaratas dos presos, ainda é possível ver perfeitamente ” P.V.D.E.” — Polícia de Vigilância e de Defesa do Estado. Nessas camaratas, contou ao JANEIRO Jorge “Pisco”, a vida era um pouco diferente das celas individuais. Percebia-se a diferença de classes, e os “operários sem apoio eram os que mais levavam”, contou Rui Batista. Mas nessas camaratas onde estariam os menos perigosos, a luta e a passagem do tempo fazia-se de pequenos pormenores, como por exemplo a música. Conta “Pisco”: “Começávamos com canções de intervenção, emocionavamo-nos e fortaleciamo-nos e quando chegava a guarda trocava-mos logo [risos]. [e cantavam]’Ponha aqui o seu pezinho'”. Apesar de a prisão da PIDE ser mista, há poucas memórias de mulheres ali detidas. Mas um dos nomes mais heróicos, sempre citado, é o de Virgínia Moura.

Relatos de ex-presos incluíram a experiência de Jorge Araújo e Silva Marques

A arte e o engenho da fuga

O editor Jorge Araújo esteve, no total, onze anos preso. No Porto, conseguiu fugir das instalações da PIDE, graças a um andaime, a um guarda “boa pessoa”, a um corte num dedo e numa fuga pelo cemitério. A história foi relembrada.

Filinto Melo

A data de 6 de Agosto de 1962 é uma das datas mais gratas das memórias de cárcere de onze anos do editor Jorge Araújo: foi nesse dia que conseguiu iludir o guarda e fugir da PIDE. No sábado, contou a sua experiência durante a visita que o movimento “Não deixem morrer a memória” organizou no Museu Militar, antiga prisão da polícia política do regime ditatorial no Porto.

Jorge Araújo foi detido a 28 de Abril de 1962, em Santo Tirso. Foi levado para a prisão da PIDE no Porto. Na Rua do Heroísmo, foi torturado e espancado durante um mês. Depois das sessões de tortura que decorriam onde hoje é o corpo principal do edifício, era devolvido à sua cela individual (estava em regime de incomunicabilidade), num espaço, entretanto demolido, entre as duas partes do Museu Militar e junto à parede vizinha do Cemitério do Prado Repouso. Segundo conta num trabalho publicado no semanário Avante!, e reiterado na sessão de sábado, passou o tempo a tentar descortinar uma hipótese de fuga.

As celas dos presos que estavam em regime de incomunicabilidade dividiam-se por dois andares, pelo comprido, estando a casa de banho no fundo do segundo andar e a mesa do guarda no extremo oposto do outro andar. No rés-do-chão ficavam três celas, logo seguidas da escada, em frente à porta de saída. Na parte de cima eram as mesmas três celas, as escadas e a casa de banho, que era sempre utilizada à noite, antes do recolher, o que foi outra condicionante importante.

Duas das condições essenciais para a fuga prendiam-se com o próprio funcionamento da prisão da PIDE. Uma delas, estranha, era que as celas só eram trancadas durante a noite. De dia, antes do recolher, estavam sem o trinco e fechadas apenas com o ferrolho (que obviamente não permitia abri-las por dentro). A outra condição era humana, mais concretamente um guarda, que além de ser “boa pessoa” e até “simpático” com os presos, era também muito lento.

Chegou-se à solução: um preso do andar inferior pedia para ir à casa de banho e como descia as escadas muito mais rápido do que o guarda, aquele especificamente, de nome Pinto, abria o ferrolho da cela ao lado; entretanto, os detidos no andar de cima pediam também para ir à casa de banho e retiam o máximo possível o guarda no processo.

Tudo estava em ordem com a excepção da saída da cadeia. As celas davam para um espaço ajardinado junto ao muro que dividia o espaço do cemitério, mas o muro era demasiado alto.

O passeio

Depois de um mês de tortura, e já preparada parte da fuga, Jorge Araújo é deslocado para a cadeia de Paços de Ferreira, como brincou no sábado “para melhorar a imagem”.

Essencialmente, contou a O PRIMEIRO DE JANEIRO, estas transferências estavam relacionadas com as acções que a PIDE levava a cabo. Como chegavam novos contingentes de presos, “autênticas vagas de presos”, alguns teriam de ser transferidos. Estas transferências eram também utilizadas como forma de melhorar o aspecto físico dos detidos após terem sido sujeitos à tortura, sobretudo por causa dos familiares e das visitas dos advogados.

Quando Jorge Araújo regressou de Paços de Ferreira à Rua do Heroísmo, a sorte tinha batido à porta. As obras no edifício tinham obrigado à colocação de um andaime, que permitiria finalmente subir ao muro que separava a PIDE do cemitério do Prado Repouso.

Decidido sobre a fuga que queria encetar, tentou perceber a escala de serviço dos guardas e ao saber que o guarda Pinto trabalharia na noite de 6 de Agosto marcou a fuga para esse dia.

Chegado o dia, Jorge Araújo pediu para ir à casa de banho. Subiu ao primeiro andar com o guarda Pinto mas, uma vez lá chegado, disse que se tinha esquecido do papel higiénico. Como o guarda era mais lento, desceu rapidamente, abriu o ferrolho da cela de Silva Marques e subiu de novo. Parte do plano funcionara. Depois, através de um código morse próprio dos presos, codificado, disse aos companheiros das celas do primeiro andar para pedirem para ir à casa de banho e conterem o guarda Pinto o máximo de tempo possível nesse andar, para que, abertas as portas, os dois de baixo conseguissem fugir e levar o máximo de vantagem sobre a PIDE, que seria logo alertada mal o guarda Pinto percebesse a fuga.

Este só se apercebeu quando foi trancar as celas, às nove da noite, como mandava o regulamento. Fez o acto do costume, contar os presos e trancar as portas. Apercebeu-se da fuga e fez soar o alarme. Contudo, o impasse que os presos do andar superior conseguiram criar ao guarda deu-lhes bastante avanço.

O dedo ensanguentado

Mais de quarenta anos depois, e perante uma plateia sedenta de história viva, Jorge Araújo conta ainda entusiasmado os pormenores da fuga. O guarda, o ferrolho, o andaime… “Subimos o andaime e saltámos para o cemitério. Ao cair cortei-me no dedo e envolvi-o com um lenço, o que se veio a revelar importante, mais tarde. Com passos largos mas em silêncio, respeitoso silêncio, dirigimo-nos à saída do cemitério. Como já estava fechado tivemos de saltar as grades e o Silva Marques magoou-se no peito”, contou.

Não encontraram táxis, mas aparece um homem, caixeiro-viajante, que vacilou aos argumentos de Jorge Araújo e Silva Marques de precisarem de ajuda hospitalar urgente – mostrando a mão ensanguentada envolvida num lenço e o ferimento no peito – que os deixou numa praça de táxis. Apanharam o primeiro táxi para o hospital, mas não entraram, naturalmente. Apanharam um segundo e um terceiro… “e lá fomos para onde tínhamos de ir”, esconde.

O guarda

Jorge Araújo contou ainda que mais tarde veio a saber que o guarda acabou por ser detido, logo nesse noite, tendo sido torturado durante três dias seguidos. Ainda esteve algum tempo preso, porque a PIDE continuava a pensar que ele estaria conivente com a fuga. Contudo, o que se tratou foi simplesmente de oportunidade, até porque os restantes guardas eram implacáveis nunca se afastando dos presos mais de um metro, mesmo quando era para ir à casa de banho. Passado algum tempo, o Guarda Pinto foi mesmo expulso.