Artigo de São José Almeida, publicado no jornal Público de Sábado, 29 de Julho de 2006 (Nacional, Semana Política)
O clima de relativização e de branqueamento do passado da ditadura faz parte do caldo de cultura que se criou em Portugal e que leva à rejeição da política e à desvalorização do valor único da política como essência vital da vida democrática. Um clima que assume contornos terríveis e perigosos na comunicação social e que esta semana escolheu como vítima Manuel Alegre.
Os deputados têm nas mãos a decisão sobre um assunto de importância maior: a apreciação sobre a petição entregue esta semana na Assembleia da República pelo movimento cívico Não Apaguem a Memória. O objectivo é a assunção pelo poder político da necessidade de deliberar sobre a criação de espaços museológicos e de outras formas de preservação, estudo e divulgação da história da repressão do Estado Novo.
É triste que só três décadas após o 25 de Abril tal movimento surja. É ainda mais triste que este movimento nasça em reacção ao facto de o edifício onde funcionou, durante décadas, a sede nacional da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa, ter sido transformado em condomínio de luxo. Mas esta transformação em condomínio de luxo de um lugar que simboliza a repressão e a tortura exercida pela polícia política fascista é realmente ela mesma o símbolo do estado a que chegou o desleixo, o branqueamento e a manipulação a que, nos últimos anos, tem sido sujeita a história do regime fascista em Portugal. Por isso a importância do que os deputados venham a decidir com base na petição que agora entrou na Assembleia.
Não basta dizer que é preciso criar um museu ou até legislar para que se crie um museu. O problema é mais profundo do que a criação de um museu, ou de um museu e um centro de documentação, mais espaços museológicos vários, memoriais, etc. É claro que a criação destes espaços físicos e simbólicos de preservação da memória são fundamentais e é grave que não existam. É grave que o Forte de Peniche, onde até há um museu sobre a prisão política, esteja no abandono que está. É grave que no Tribunal da Boa-Hora não haja nada que lembre os julgamentos plenários, é grave que o Aljube não tenha nenhuma recordação simbólica dos “curros”. Às vezes, há pequenos gestos que quase não custam dinheiro, mas que fazem toda a diferença, como, por exemplo, a lápide que, na Rua Dias Coelho, recorda quem lá foi morto e por quem.
Há toda uma questão de atitude que é preciso recuperar, alterar, até inverter. Daí a responsabilidade que recai sobre os deputados que terão de decidir que futuro e uso vão dar à missão que um grupo de seis mil cidadãos lhes coloca agora em mãos. A tarefa é enorme, ciclópica. E as resistências brutais. Até pela mentalidade amorfa, acrítica, manipulável e manipulada, que se desenvolveu em Portugal e que é responsável pelo branqueamente que é feito, por exemplo, por muita da opinião publicada, acerca do regime político que se chamou a si mesmo Estado Novo e que se insere claramente nos regimes fascistas do século XX – polícia política que pratica habitualmente a prisão, a tortura e que também foi responsável por mortes, ausência de liberdade de expressão e de imprensa, censura, ausência de liberdades civis, ausência de pluralismo político, ausência de eleições democráticas, regime de partido único, manutenção de uma guerra colonial, um sistema social e legal racista – e que muitos acham interessante considerar agora com um mero regime autoritário e não totalitário.
É o laxismo perante a própria história, é o apagamento da memória colectiva, é o branqueamento das responsabilidades e dos reais contornos de terror e opressão, que consubstanciam o relativismo perante as responsabilidades não só em relação ao passado, mas também em relação ao presente. Ou seja, é a noção exacta do que representou a ditadura fascista de Oliveira Salazar e de Marcello Caetano que dá o real valor e a real dimensão da importância única, insubstituível da democracia.
Ora, o clima de relativização e de branqueamento do passado da ditadura faz parte do caldo de cultura que se criou em Portugal e que leva à rejeição da política e à desvalorização do valor único da política como essência vital da vida democrática. Um clima que assume contornos terríveis e perigosos na comunicação social e que esta semana escolheu como vítima Manuel Alegre. A boçalidade perante as figuras públicas, o desprezo pela política e pelo que esta significa como essência da democracia, a ignorância atrevida e facilmente manipulável, a presunção do justicialismo, o deslumbre com o poder dos media, tudo isto, provavelmente a par de enormes doses de má-fé e irresponsabilidade, esteve na origem da perversa e difamatória notícia sobre a reforma de Manuel Alegre, que foi reproduzida pavlovianamente na generalidade da comunicação social, sem que os jornalistas parassem para pensar na alarvidade que estavam a reproduzir, quais papagaios idiotas.
É este clima de relativização absoluta da história e da política que abre caminho às maiores manipulações populistas e demagógicas, que põe em causa a própria democracia. Um clima em que é normal meia dúzia de jornalistas acharem que podem reproduzir a notícia completamente descontextualizada sobre o direito universal à reforma de todos os cidadãos em Portugal. E, quais burros que comem a palha que lhes põem à frente, desatam a proceder a um assassinato de carácter, com base na presunção de que o político é sempre um vigarista, que o político é sempre alguém que está na política para “se encher”. E nem sequer pensam que a mulher ou o homem que se dedica à vida política é gente como todos os outros, com os mesmos direitos de todos os cidadãos, logo com direito a uma carreira contributiva e à respectiva reforma. Para muitos dos ignorantes e presunçosos jornalistas portugueses, que têm uma espécie de Salazar dentro da cabeça, o político é sempre um criminoso, que não tem direito a nada.
É este clima de desvalorização da política que devia preocupar os deputados e as elites políticas em geral, os quais, para além do longo e difícil caminho da reabilitação da vida político-partidária perante os cidadãos, deviam começar a valorizar a política, reabilitando a história e a sua memória, como modo de dignificar a democracia e até de a preservar.
P.S. – Esta página volta a ser publicada a 9 de Setembro.