Artigos no DN de Fernando Madaíl (2006/08/20)

No Diário de Notícias deste Domingo, 20 de Agosto de 2006, foram publicados dois artigos de Fernando Madaíl: Movimento quer roteiro da ditadura de Salazar e Quantas foram as vítimas da PIDE?
Para arquivo e conveniência os mesmos podem ser consultados aqui na nossa página.

Movimento quer roteiro da ditadura de Salazar
Fernando Madaíl

Vocês podem imaginar isto tudo, amigos?” A interrogação da ex-presa Maria Fernanda Leitão foi publicada na revista Notícia, a 25 de Maio de 1974, sendo reproduzida no livro PIDE – A História da Repressão (coordenação de Alexandre Manuel, Rogério Carapinha e Dias Neves).

Sem a fama de Cunhal ou Soares, Jaime Cortesão ou Torga, Emídio Santana ou Palma Inácio, descrevia a repressão fascista. “O que era, em prisões destas, ser torturado, espancado, apodrecer nos curros, adoecer, tuberculizar, ter cancro, ter dores, vomitar, ter período menstrual, não tomar banho, tremer de frio, passar fome? Ninguém pode imaginar. Só vendo.”

“Vocês poderão imaginar, amigos”, prosseguia, “o que eram os interrogatórios, os insultos, a vida inteira devassada, avacalhada, o silêncio das noites, o isolamento, os anos passados, as cartas abertas, os parlatórios com microfones minúsculos debaixo dos mosaicos das paredes, as visitas com guardas ao lado? Ninguém pode imaginar. Só tendo passado por isto.”

Manuela Cruzeiro, na apresentação do livro Silêncio – Prisões Políticas Portuguesas, do fotógrafo Pedro Medeiros, invoca o título provocatório de Eduardo Lourenço, O Fascismo Nunca Existiu (1976). A investigadora do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra escreveu antes de surgir o movimento Não Apaguem a Memória!, uma vez que a missão fotográfica de reconstituir o universo concentracionário e repressivo do Estado Novo decorreu entre 1999 e 2005 e os autores da petição ao Parlamento só se organizaram em Dezembro de 2005.

O roteiro essencial do fascismo português que este movimento cívico, sem direcção formal, pretende que seja criado passa por locais emblemáticos da brutalidade da polícia política, nomeadamente a sede central da PIDE/DGS em Lisboa, as cadeias do Aljube, Caxias e Peniche, o Tribunal Plenário. Mas um dos ícones do que Salazar designava por uns “safanões a tempo” – da tortura do sono e da estátua (o comunista Francisco Miguel esteve 51 dias de pé) até à morte -, o mais temível de todos, que era o campo de concentração do Tarrafal, não está em território português.

Edmundo Pedro, um dos cinco sobreviventes que estrearam o “campo da morte lenta”, onde estiveram desde o treinador de futebol Cândido de Oliveira ao escritor Luandino Vieira, lembra que o Tarrafal integra simultaneamente a memória do combate contra o nazi-fascismo (inaugurado em 1936, era cópia dos campos hitlerianos) e da luta anticolonial: encerrado em 1954, seria reaberto para os presos dos movimentos de libertação.

E, no entanto, o projecto também deve servir para enaltecer os “semeadores de liberdade”, como definiu os lutadores contra a ditadura o ministro Santos Silva. Afinal, só as fugas mais rocambolescas davam filmes: Nuno Cruz e outros reviralhistas foram brutalmente espancados por cúmplices que se fizeram passar por polícias que os iriam transferir de cadeia; José Magro e outros comunistas saíram de Caxias no carro blindado de Salazar; Palma Inácio serrou as grades da prisão da PIDE no Porto com limas que guardava nos frascos do chocolate e do leite em pó. Vocês podem imaginar?

(http://dn.sapo.pt/2006/08/20/tema/movimento_quer_roteiro_ditadura_sala.html)

Quantas foram as vítimas da PIDE?
Fernando Madaíl

Desde o tempo em que Raul Proença editou um panfleto a denunciar a ditadura, logo em Dezembro de 1926, até Palma Inácio sair de Caxias de braços abertos a saudar a liberdade reconquistada em Abril de 1974, houve “não se sabe quantos” presos políticos durante o fascismo.

Um dos grupos de trabalho do movimento Não Apaguem a Memória! vai dedicar-se a fazer um levantamento, na Torre do Tombo, de todas as vítimas da ditadura militar e dos governos chefiados por Salazar e Marcelo Caetano.

Ao longo de 48 anos, passaram pelos calabouços do regime antigos ministros e militares do reviralho, anarquistas e comunistas, operários e camponeses, intelectuais de renome e funcionários públicos, maçons e sacerdotes, velhos republicanos e monárquicos anti-salazaristas, comunistas fiéis a Moscovo ou cisionistas pró-Pequim, africanos anticolonialistas e estudantes universitários, todas as correntes de opinião.

Na sede da PIDE/DGS, na António Maria Cardoso – nome da rua lisboeta que, a exemplo do que sucedia com a portuense Rua do Heroísmo, só de se pronunciar metia medo -, foi encontrado quase um milhão de nomes nos ficheiros, embora fossem incomparavelmente menos aqueles que tinham direito a fichas idênticas às que se publicam no topo destas páginas (de Álvaro Cunhal, Mário Soares, Palma Inácio, Dias Lourenço, Pires Jorge e Jaime Serra).

A designação PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) só foi usada entre 1945 e 1969, mas os métodos dos agentes de Agostinho Lourenço e de Silva Pais tornaram a sigla terrível. Antes, chamou-se Polícia Especial, Polícia de Informação Pública, Polícia de Defesa Política e Social, Polícia de Vigilância e Defesa do Estado. Depois da “Primavera Marcelista”, Direcção-Geral de Segurança (DGS).

Francisco Sá Carneiro, como deputado da Ala Liberal, propôs na Assembleia Nacional, em Janeiro de 1972, a criação de uma comissão eventual que estudasse as queixas sobre a actuação da DGS e as condições na cadeia de Caxias. “Insisto em que se cumpra a lei e nada mais. Cumprimento que é a garantia de que as pessoas sejam humanamente tratadas, qualquer que seja o crime de que são suspeitas. Investigação não é, não pode ser, obtenção de confissões”, alegava o que viria a ser o fundador do PPD/PSD.

Como resposta, ouvia Casal Ribeiro comentar que a defesa da sociedade “faz-se à bomba” e Henrique Tenreiro proferir um “não apoiado”. No ano seguinte, após o seu projecto de lei de amnistia para crimes políticos ser considerado “gravemente inconveniente”, abandonou a Assembleia.

(http://dn.sapo.pt/2006/08/20/tema/quantas_foram_vitimas_pide.html)