“A Mulher e a Resistência” – exemplos para não esquecer
O Movimento Não Apaguem a Memória! promoveu no passado dia 8 de Março, na Biblioteca-Museu República e da Resistência, em Lisboa, uma homenagem às mulheres portuguesas que lutaram contra o Estado Novo. Através de dois painéis distintos – um que reunia investigadoras com pesquisas centradas na ditadura e no papel das mulheres no seu combate, outro que trouxe a voz das protagonistas dessa luta, complementado com um filme de Susana Sousa Dias – a resistência feminina emergiu nas suas várias cambiantes.
No painel da manhã, depois da apresentação das razões do colóquio, a cargo de Nuno Teotónio Pereira, seu proponente, três investigadoras sociais apresentaram comunicações que permitiram contextualizar o que foi o papel da mulher na resistência antifascista ao Estado Novo.
Irene Pimentel, investigadora com vasta bibliografia publicada sobre a repressão salazarista e marcelista, reflectiu sobre as características da resistência feminina à ditadura, centrando-se sobre a situação prisional das mulheres, que foram “mulheres rebeldes” e não apenas “mulheres de rebeldes”, na especificação do Código Penal de 1867, em vigor até 1967.
Vanessa Almeida, com uma tese em curso sobre as mulheres das casas clandestinas do Partido Comunista Português, traçou o que era a vida das mulheres que as mantinham, do modo como se foram afirmando dentro da organização do PCP, criando meios de comunicação próprios, como foi o caso do jornal “A Voz das Companheiras”. Aludiu à repressão crescente, que a partir da década de 1960 as colocou, nos interrogatórios feitos pela PIDE/DGS, em situação de tortura do sono, de estátua, violência física, num processo homólogo ao tratamento que era dado aos “clandestinos”.
Sónia Ferreira, antropóloga, autora de “Mulheres de Desaparecidos do Chile”, mostrou como se desenvolveu, na conjuntura dos anos ’40, a resistência das mulheres operárias em Almada e a sua inserção no movimento grevista de luta, dando realce ao quotidiano dessas lutas inseridas no trabalho nas fábricas conserveiras e corticeiras.
A encerrar o painel da manhã e antes do debate, falou Manuela Tavares, da UMAR, que trouxe à colação o papel da censura no Estado Novo. Ilustrou a sua dissertação com o livro “As Novas Cartas Portuguesas”, de Maria Teresa Horta, Maria Barreno e Maria Velho da Costa. Enquanto o processo que lhes foi instruído em Portugal foi totalmente censurado em toda a comunicação social, um extraordinário movimento de solidariedade internacional, que passou pelo francês “Le Monde” e pela revista norte-americana “Time”.
De tarde, após a projecção do filme de Susana Sousa Dias, sobre o estatuto das enfermeiras no Estado Novo (2000), obrigado ao celibato, por imposição legal, apresentado pela realizadora, seguiu-se um debate.
As duas protagonistas do documentário, Isaura Borges Coelho e Hortênsia Campos Lima, foram as duas irmãs que no início da década de 1960 puseram a circular um abaixo-assinado solicitando a Salazar o fim do que era considerado uma violência legal pela quase totalidade das enfermeiras: a obrigação do celibato. Para elas era uma atitude espontânea e de revolta legítima. Foram presas. Recordaram que a PIDE as considerou perigosas subversivas, ligadas PCP. Foram submetidas a pesados interrogatórios, com situações absurdas, como a que ocorreu com a jovem Hortênsia, então com 20 anos, que na sua agenda tinha anotado “Aniversário do meu P[rimeiro] B[eijo]”, que foi entendido como “Aniversário do meu P[artido] B[olchevique]” e, a partir daí, interrogada sobre que iniciativas estavam previstas para assinalar tal evento.
O testemunho destas resistentes em legalidade foi complementado por outros, como da Maria de Jesus Barroso, que recordou o papel de Isabel Aboim Inglez, madrinha da sua filha, e de quem recordou um conselho muito seguido pelas oposicionistas do regime autoritário: “Na PIDE sorri-se muito, fala-se pouco e mente-se sempre”. Também, Estela Piteira Santos deu testemunho do que foram esses tempos em que a polícia política irrompia alta madrugada pelas casas dentro, para prender, bater e ameaçar.
A vida das clandestinas foi recordada por Albertina Diogo, presa em Novembro de 1960 e que foi condenada a seis anos de prisão, acusada de ser funcionária do PCP e de no seu apartamento de Benfica, em Lisboa, acolher as reuniões da comissão política do partido ilegalizado.
Domicilia Coreia da Costa recordou a sua vida na clandestinidade, dos sete aos 21 anos, e acentuou que como ela muitas outras jovens tiveram que passar por esse modo de vida dissimulado em mil um disfarces.
Nas casas clandestinas, as mulheres asseguraram um trabalho de sombra que manteve viva a resistência, escrevendo e protegendo essas instalações, aí vendo dolorosamente crescer os filhos, de que geralmente eram precocemente separadas, fosse para que pudessem estudar, fosse porque a prisão as atingia. Envolvidas em tarefas políticas de risco eminente, nas condições da ditadura salazarista-marcelista, a prisão tornou-se-lhes familiar. Sob duras condições de tortura, foram espancadas, sofreram a estátua, aviltaram-nas na sua feminilidade. Quando os companheiros eram presos ou quando só eles “mergulhavam” (passavam à clandestinidade), cabia-lhes assegurar sós a vida familiar e dar o suporte material e emocional de que necessitavam de forma acrescida.
Pelo movimento estudantil, que a partir da crise de 1961/62 desempenhou um papel importante no trabalho de oposição legal à ditadura, falou Sara Amâncio, que, em remate, deixou uma proposta: Não se recriminem os jovens por eles se mostrarem alheados desta realidade que fez o quotidiano dos portugueses durante 48 anos e que hoje lhes parece uma história medieval. Recrimine-se quem tenta apagar da memória actual esse tempo ainda tão próximo.
Sobre a resistência em meio rural discorreu a antropóloga Paula Godinho, tomando por referência o caso das mulheres do Couço, que nas décadas de 1950 e 60 foram submetidas a vagas de prisões sucessivas. Precisamente para testemunhar esse papel de heroicidade e resistência, o colóquio prolonga-se amanhã, sábado, numa romagem a Coruche e ao Couço, para testemunhar a solidariedade com essas mulheres e, de um modo mais geral, com todos e todas as que, em condições de sobrevivência mínima, souberam resistir com grande dignidade e total abnegação ao terror da polícia política do Estado Novo.
Através das mulheres presentes, do seu exemplo de dedicação à luta por uma sociedade justa e livre da opressão, fazendo face aos constrangimentos do seu género, que as subalternizavam, nas duras condições da ditadura, as comunicações e depoimentos feitos no colóquio, permitiu lembrar a gesta de todas as que sofreram e não vergaram, pagando até com a vida a sua atitude.
A jornada do 8 de Março terminou com um convívio na Associação 25 de Abril, onde amavelmente a Ler Devagar instalou uma banca de livros, alusivos ao tema da mulher na resistência, em que Vítor Sarmento e Jorge Jourdan, membros do grupo Erva de Cheiro, fizeram a festa, com um canto livre, que despertou a vontade e a vocação de cantar em várias das pessoas presentes.