Os 40 participantes na romagem do passado sábado, dia 10, a Coruche e ao Couço deixaram um voto: a experiência é para repetir. Por isso, citando Zeca Afonso, que acabou por ser, também ele, um dos homenageados desta iniciativa, para a próxima venham mais cinco.
A romagem prolongou o colóquio de 8 de Março, que decorreu na Biblioteca-Museu da República e Resistência, em Lisboa, dedicado ao tema “a Mulher na Resistência”. A excursão tinha por finalidade manifestar a solidariedade dos participantes às mulheres do Couço, símbolo da resistência rural ao fascismo do Estado Novo.
O autocarro arrancou de Lisboa quase dentro do horário previsto e cumpriu a hora de chegada. Às 10h estavam todos no Museu Municipal de Coruche, onde uma amável guia, Eugénia, organizou três grupos para proceder a visitas guiadas à exposição permanente, que retrata a realidade histórica e etnográfica de Coruche, desde os tempos remotos do paleolítico. A mão e o que ela fabrica é o fio condutor desta exposição, que tem um prefácio e um posfácio de pendor didáctico. Na entrada recorda-se a origem do homem na Terra e, no final, fica a mensagem que esta criatura, saída deste ventre, deve cuidar da natureza, que também é sua.
A sessão de boas-vindas, que se seguiu, decorreu no auditório José Labaredas, e foi presidida pelo nosso anfitrião, Dionísio Mendes, presidente do município ribatejano. Na mesa, a seu convite, tomaram lugar Maria Barroso, que se associou à iniciativa do Movimento e, pelo Movimento, Paula Godinho e Ana Gaspar.
Maria Barroso falou desse tempo de resistência, a partir de exemplos pessoais vividos no distrito escalabitano. Recordou como na década de 1950, num sarau cultural em que interveio para recitar poesia, foi o próprio governador-civil, que presidia quem a veio a denunciar à PIDE, considerando que os poetas escolhidos, José Gomes Ferreira, Rui Namorado, Armindo Rodrigues e Sidónio Muralha, pertenciam às fileiras da oposição democrática, sendo o sarau um estratagema para realizar uma sessão política contra o Estado Novo. Daí resultou um processo que pesou na sua expulsão do Teatro Nacional D. Maria II, onde fazia parte da companhia de Amélia Rey Colaço. Falou, igualmente, das pessoas boas que souberam resistir com coragem e abnegação à abjecção da delação e da submissão. Realçou uma mulher do Couço, Maria Rosa Viseu (?), que em 1969, no curto mês em que se permitia fazer a campanha eleitoral, se dirigiu de braços abertos a Maria Barroso, que integrava a lista da oposição democrática, para nesse abraço testemunhar a solidariedade e o apoio de quem fora torturada e humilhada pela PIDE, no seguimento da campanha presidencial de 1958.
O presidente da Câmara aproveitou o local onde nos acolheu – auditório José Labaredas – para recordar o resistente das lutas do Couço que lhe deu o nome. Para nos apresentar o concelho, fez seu um texto dele: “Sopa Rica de Município à Vale do Sorraia” (Ed. Assírio e Alvim):
“Tome-se um concelho de bom tamanho, com dimensão nunca inferior a mil e cem quilómetros quadrados de superfície (…) Povoe-se de gente lhana e louçã, com o quantum satis do que é normalmente a condição do espírito humano: dignidade e orgulho (mas que este não sobrepuje os limites que devem ter todas as coisas boas, simples e gratuitas). Juntem-se-lhe, em proporções exactas os seguintes ingredientes: De firmeza, quatro arráteis, um alqueire de verticalidade, um bom punhado de generosidade em grão, de amor pela labuta duas mãos cheias e espírito solidário à vontade (…) Enquanto o preparado repousa, saia-se, campos fora, por uma manhã de Abril, leda e soalheira e colham-se das papoilas mais rubras um ramalhete viçoso; quando se chegue a um velho sobreiral, procure-se a clareira mais chã e solar e nela se colham doze pés de rosmaninho (…)” (p. 201).
Convém dizer que à entrada do auditório o presidente do município presenteou cada um dos participantes da romagem com duas obras de antologia etnográfica: o citado livro de José Labaredas, “Coruche à Mesa”, e a tese de doutoramento de Paula Godinho, “Memórias da Resistência Rural no Sul” (Ed. Celta).
Foi Paula Godinho quem recordou que o sindicalismo rural português do final do século XIX e período republicano nasceu naquelas lezírias entre Alentejo e Ribatejo. Depois, com o esmagamento das liberdades cívicas pelo Estado Novo, na década de 1930, foi-se esbatendo, para voltar em meados da década seguinte, com as marchas da fome, a cobrir o concelho e a expressar o seu protesto junto à Câmara. Do Couço, 30 km a pé, por campos e estrada, vieram as mulheres, numa das primeiras manifestações em que participaram, vestidas de negro e já possuidoras daquela determinação que não mais as abandonaria até à liberdade de Abril de 1974.
Recordou o episódio de 6 de Junho de 1958, quando o Couço foi palco de um comício de apoio à candidatura de Humberto Delgado. Realçou as dificuldades inúmeras que foi preciso vencer para obter em Santarém, no Governo-Civil, a autorização para o realizar. Destacou a atitude da população que, em peso, foi até à garagem dos Olímpios, com capacidade para não mais de 200 pessoas, e, por isso, ficou apinhada. Deu conta do relatório dos agentes da PIDE, que ficaram impressionados com a manifestação de acolhimento aos oradores do comício, que encheu de povo a Rua do Comércio (ou da jorna) e anotaram a presença de “umas duas a três mil pessoas” na garagem. Exagero, como se constata do relato de uma das participantes desse comício histórico, Maria Custódia Chibante, que calculou em não mais de 200 pessoas as que estiveram nessa noite na garagem dos Olímpios (entretanto demolida). “A verdade basta”, foi a sua expressão. Não que não houvesse gente cá fora, até para dar conta das manobras da GNR, que tinha deslocado uma força para o Couço. Temia-se uma carga policial à saída e, num acto de auto-defesa, cada um levou no bolso uma pedra.
O receio pelas consequências de uma tal atitude repressiva, aguçou o bom senso do comandante da força da GNR e impediu esse confronto. À saída, os participantes no comício, vendo que o ambiente estava sossegado, foram tirando do bolso as pedras e deixaram-nas à esquina da rua.
No dia seguinte fizeram uma estranha peregrinação em direcção a um monte de pedras, cujo significado passou de todo despercebido aos agentes da polícia política que vigiavam a localidade.
A repressão veio depois das eleições, onde a lista de Humberto Delgado recolheu 76% dos votos. Em finais de Junho, no pino sazonal dos trabalhos de campo, os agrários deram ordem aos capatazes para baixar o preço da jorna. Foi o desencadear de uma greve que juntou os que tinham participado no comício, com os poucos que se tinham alheado daquela manifestação. Houve prisões e repressão. O nome de João Camilo, personagem ímpar na então aldeia do Couço, foi por diversas vezes citado. Sempre que alguma agitação social percorria o concelho era certo a PIDE prendê-lo e levá-lo para interrogatórios na “António Maria Cardoso”.
João Camilo foi preso, com mais três companheiros, no dia 23 de Junho de 1958 e encarcerado no posto da GNR (que entretanto deu lugar a uma residência), à espera que de Lisboa chegasse a brigada da PIDE. Levantou-se o povo em revolta, cercou o posto e clamou a sua indignação. Exigiu, e obteve, a libertação dos seus concidadãos.
Nestas lutas as mulheres estiveram sempre na primeira linha e quando em 1961/62 se levantou a luta pelas oito horas de trabalho, foram elas, em muitos locais, quem deu o sinal para a greve de zelo.
Face à oposição dos agrários em respeitar as oito horas de trabalho, mantendo que o dia era de sol a sol, o pessoal decidiu, por ele próprio, fazer cumprir o horário. Pegavam às 7h, pois bem largavam à 15h. Foram as mulheres que trabalhavam no regadio do canal do Sorraia quem impôs esta forma de luta, que acabou por se alargar a toda a freguesia e, depois, ao concelho de Coruche e ao resto do Alentejo.
Destas lutas e do seu significado pela liberdade e um trabalho digno, falou Paula Godinho, a guia da excursão na visita ao Couço.
Ana Gaspar, em nome do Movimento, fechou a sessão no auditório José Labaredas, dando conta aos participantes e ao nosso anfitrião dos justos agradecimentos que merecia, pela disponibilidade que revelara no acolhimento que nos dava. Dionísio Mendes agradeceu, dizendo que esperava que o Movimento retribuísse participando na sessão comemorativa dos 33 anos do 25 de Abril, o que foi aprovado com uma salva de palmas.
Depois de uma visita à magnífica exposição de evocação do José Afonso, patente no antigo edifício dos CTT, presentemente integrado no Museu Municipal, fez-se um passeio até a um ex-libris da gastronomia local, “O Farnel”, para aí provar um dos pratos que merece distinção no livro de José Labaredas: “o bacalhau à Farnel”.
Foi uma longa pausa de quase duas horas, regada por um macio vinho e com muita conversa dispersa e bem disposta.
Às 15h30 fez-se a segunda paragem diante da igreja da Azervadinha, onde Nuno Teotónio Pereira e Dionísio Mendes fizeram a história daquele templo que, diz a placa no cimo da porta de entrada, foi aberto ao culto com “a assistência do PR Américo Tomaz”, em meados da década de 1960. Esta “assistência” testemunha uma perturbação do regime ditatorial, que desfez a comunidade eclesiástica, dirigida por dois padres holandeses, por ela seguir demasiado perto o Evangelho cristão e frequentar pouco as casas dos agrários. Os padres holandeses foram expulsos do país, o templo comunitário reestruturado arquitectonicamente, de modo a retomar a traça tradicional das igrejinhas de aldeia que o Estado Novo propagandeava.
Teotónio Pereira, primeiro proponente desta romagem, sublinhou ainda o seu significado, pondo em evidência o papel que as mulheres desempenharam na resistência à ditadura e a necessidade de o tornar historicamente mais visível.
A visita ao Couço principiou na Cooperativa “Conquista do Povo”, onde Joaquim Canejo, figura áurea do período da reforma agrária, nos deu as boas-tardes, dessedentando-nos e desejando-nos uma boa visita.
No logradouro arrelvado que lhe fica em frente, Paula Godinho fez as últimas observações sobre o contexto antropológico do Couço e falou das vivências das suas mulheres, após o que partimos para a actual Rua do Comércio. É a antiga praça da jorna, onde ainda perduram, nas quatro esquinas, quatro restaurantes, marcas de antigas tabernas, onde se fazia a “molhadura”, ou seja, o assentamento do contrato selava-se com um copo de vinho.
O passeio durou uma boa meia-légua – para alguns pés mais doridos foi mesmo uma légua bem medida – e deu para cumprimentar a D. Maria Madalena, viúva de Joaquim Castanhas, pesados 83 anos de vida de provações e de luta permanente por conservar a dignidade dos resistentes de sempre.
A merenda, para aqueles a quem o passeio despertou o apetite, fez-se numa mesa da Cooperativa, com chouriço, pão e queijo, comprados na mercearia, e vinho servido pelo sempre irónico e bem disposto Joaquim Canejo.
O regresso para Lisboa fez-se às 18h15, como previsto, infelizmente sem que nos tivesse sido possível avistar-nos com o presidente da Junta de Freguesia, Luís Alberto Ferreira. Não teve qualquer disponibilidade para o fazer, já o dissera à delegação do Movimento que no passado 27 de Fevereiro se deslocou ao Couço, para lhe dar conta da nossa romagem.