Comunicado de Imprensa – 2 Novembro 2007

Espanha e Portugal – o mesmo dever da memória

As Cortes espanholas aprovaram no passado 31 de Outubro a Lei da Memória Histórica que reabilita as vítimas da ditadura franquista.

A Assembleia da República tem para votação, desde 30 de Março deste ano, uma Resolução que nessa sexta-feira foi discutida em plenário sem oposição de nenhum grupo parlamentar. Esta Resolução, cujo parecer coube ao deputado Marques Júnior, foi suscitada por uma Petição apresentada pelo Movimento Cívico Não Apaguem a Memória! (NAM!). Se querermos insistir em desnecessárias comparações, julgamos que é tempo do Estado português, representado na Assembleia da República tomar uma posição de reconhecimento público e histórico sobre a resistência à ditadura do Estado Novo.

Espaço de memória na sede da ex-PIDE/DGS (Rua António Maria Cardoso)

fotografia da reunião do NAM na CML em 30 de Outubro de 2007O NAM! criou-se a partir de uma manifestação de protesto pela destruição da antiga sede da polícia política salazarista, sem que naquele edifício da “Antónia Maria Cardoso”, em Lisboa ficasse qualquer memória do que ele significou de abnegação e de sacrifício por parte dos milhares de cidadãos que ali foram interrogados, torturados pelos esbirros do fascismo português, designados por “pides” ou “bufos”, até à morte, em alguns casos.

A partir daí foi possível criar uma base de trabalho com a Câmara Municipal de Lisboa e com o promotor imobiliário do novo edifício, no sentido de preservar, num espaço apropriado, a luta pela democracia, que aquele lugar também personifica. As conversações principiaram em 10 de Abril de 2006, tiveram algum desenvolvimento e permitiram delimitar o espaço destinado ao memorial, mas foram interrompidas pelas recentes eleições intercalares para o executivo camarário.

O NAM! entendeu que passados quatro meses sobre a eleição do novo executivo (1/8/07) era tempo de reatar as conversações e solicitou uma audiência ao novo presidente do município, António Costa.

O pedido foi prontamente anuído e na passada terça-feira, 30 de Outubro, uma delegação do foi recebida pelo Dr. António Costa. A audiência prolongou-se por mais de uma hora e permitiu repor na agenda que o NAM! tem com a CML a necessidade de preservar a memória da resistência na Rua António Maria Cardoso e, também, de noutros locais e de outros modos que nos assegure que as novas gerações não esquecerão o que foi a luta pela democracia em Portugal.

António Costa afirmou o seu empenho e o do seu executivo em colaborar nos fins do NAM! e referiu, em resposta à exposição que lhe fora feita por Fernando Vicente, coordenador do Grupo de Trabalho da “António Maria Cardoso”, ser lógico que a CML assumisse a propriedade do espaço no imóvel destinado ao memorial como um seu condómino. Considerou, em princípio, que o desenho museológico desse memorial poderia vir a ser feito pelo NAM!, se assim o entendêssemos. Assumiu o compromisso de vir e a estudar com a restante vereação e respectivos serviços a melhor forma de poder ajudar na concretização do projecto. Assegurou que a CML iria em breve indicar ao NAM! um interlocutor para este assunto.

A reunião permitiu abordar outros aspectos da afirmação do dever da memória no município de Lisboa, pondo Raimundo Narciso, que fazia parte da delegação, a tónica na organização temática dos “roteiros” que permitam a realização de passeios históricos nos lugares da cidade onde a defesa da democracia implicou a prisão, o espancamento e a morte. Em complemento a esta proposta frisou a necessidade deste conhecimento do passado fazer parte dos curricula escolares, designadamente das escolas que estão a cargos da CML. Pôs ainda na agenda a possibilidade de o NAM! vir a usufruir de uma sede num dos edifícios que a CML lhe possa disponibilizar.

Esta foi uma proposta que António Costa considerou merecer reflexão, bem como a que fizera o terceiro elemento da delegação, Duran Clemente, quando deu conta da possibilidade dos lugares da resistência ficarem assinalados com lápides, como a colocada no Tribunal da Boa-Hora, em Lisboa, por iniciativa do NAM!, a 6 de Dezembro de 2006, recordando que ali funcionaram os “Tribunais Plenários”, um arremedo de justiça, na realidade extensão do braços repressivo da PIDE/DGS.

A prisão do Aljube – Museu da Liberdade e Resistência

O NAM! recorda que no passado 19 de Outubro teve uma outra audiência com o ministro da Justiça, Alberto Costa, a terceira com esta titular, que teve por objecto a conversão do edifício da antiga prisão do Aljube, em Lisboa, num Museu da Liberdade e Resistência ou num pólo destacado de uma rede de Museus nacionais sobre este tema.

A conversa decorreu de modo francamente coloquial, com o Dr. Alberto Costa a referir o seu empenho de cidadão na concretização desse objectivo, mas recordando que a propriedade do imóvel era do Ministério das Finanças, que podia ter outros desígnios para aquele espaço. Acrescentou, no entanto, que enquanto ele estivesse afecto ao Ministério da Justiça e ele fosse o seu titular tinha uma total disponibilidade para encontrar com o NAM! um lugar condigno para a instalação desse museu, que ele também considerava necessário no Portugal democrático.

No decorrer da conversa foram avaliadas as possibilidades de transformação do antigo Aljube num espaço museológico, tendo o ministro avançado com duas hipóteses a considerar:

1. Através da constituição de uma fundação tendo o NAM! como referência estatutária, com o objectivo específico de criar e gerir o futuro museu. Nesse caso o papel do Estado seria unicamente o de ceder o espaço para o efeito;

2. Ou assumir esse papel de instalação do museu através do Ministério da Cultura. Considerou, nesse caso, que o NAM! deveria projectar-se como um assessor privilegiado de consulta e aconselhamento na realização do projecto.

No decurso da audiência foi levantada a possibilidade de ali vir a instalar-se a sede do NAM! , proposta que o ministro considerou de ponderar, para ela muito contribuindo a decisão governamental de transformar ou não o Aljube num pólo museológico “Resistência e Liberdade”.

Tarrafal – colóquio internacional em 2009

Passou no passado 29 de Outubro mais um aniversário sobre a instalação em cabo Verde do “campo da morte lenta” do Tarrafal, um campo de concentração criado em 1936 pelo Estado Novo, para aí poder isolar até ao fim os seus opositores mais determinados.

Vale a pena referir que a efeméride foi assinalada pela RTP2, com um documentário de qualidade, assinado por Fernanda Paraíso e produzido pela Take 2000. Através dele pudemos seguir os percursos e motivações de cinco antigos “tarrafalistas”: Sérgio Vilarigues, Josué Romão (entretanto falecidos) e de José Barata e Edmundo Pedro.

O NAM! , através do Edmundo Pedro, seu membro desde a primeira hora, está a participar na organização de um colóquio internacional, a realizar no 1 de Maio de 2009, dia em que em no ano de 1974 uma manifestação popular fechou o presídio do Tarrafal e de lá libertou os derradeiros presos dos movimentos independentistas africanos, lá detidos desde 1961.

Este colóquio está a ser concebido com o apoio do Presidente da República de Cabo Verde, Pedro Pires, e do Ministério da Cultura de Portugal. Tem como seus principais impulsionadores Edmundo Pedro e Pedro Martins, arquitecto cabo-verdiano a residir em Nova Iorque, ambos antigos presos do Tarrafal.

Café Ceuta

cartaz da iniciativa “Encontros em Lugares de Memória da Resistência” o Café Ceuta no Porto em 27 de Outubro de 2007O núcleo do Porto do NAM! está realizar um ciclo de Encontros em Lugares de Memória da Resistência, esperando que as histórias contadas pelos protagonistas das acções de resistência antifascista venham enriquecer a nossa memória colectiva do fascismo.

A mais recente decorreu no passado 27 de Outubro, no café Ceuta.

O jornalista Victor Melo fez uma crónica sobre este encontro para o Primeiro de Janeiro, que, com muito agrado, nos permitimos reproduzir:

Histórias de resistência de quem sofreu às mãos do antigo regime
“Sem memória não há futuro”

Sexta-feira, 24 de Março de 1967. Um tiro cruza a estrada e rebenta um dos pneus do velho Mini Morris, arrastando o veículo e os seus quatro ocupantes por uma ribanceira de 30 metros. Após uma queda revoltosa, imobiliza-se, capotado e em chamas. Dois dos ocupantes conseguem sair e retirar um outro por uma das exíguas janelas do já por si exíguo automóvel. O quarto ocupante, preso por um dos bancos, morreu queimado. José Nozes Pires Jorge Pires recupera os sentidos deitado no alcatrão, com a visão de centenas de jornais a esvoaçar pela estrada. E foi precisamente com esses papéis e palavras proibidas a pairar à sua volta que seria algemado por dois agentes da PIDE, moribundo, ainda a ouvir os gritos de agonia do seu amigo a ser devorado pelas labaredas.

Com 21 anos, estudante do segundo ano da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e acabado de aderir ao partido comunista, tinha arrancado do Porto com destino a Lisboa. O carro foi interceptado na estrada nacional em Arrifana, perto de Santa Maria da Feira. Na bagageira seguia uma mala com centenas de jornais do Avante. “Na altura eram jornais clandestinos, proibidos. Bastava ser apanhado com um na mão para ser interrogado ou até preso”. As publicações eram impressas em tipografias sombrias, clandestinas, secretas. “Quando impressos no norte, eram distribuídos no sul ou vice-versa”.

O jovem estudante permaneceu hospitalizado durante quatro meses, sob ordem de prisão. “Era surreal, eu cheio de gesso dos pés à cabeça, a ser interrogado na enfermaria pelos agentes da PIDE, munidos de máquinas de escrever e ávidos por respostas”, recorda.

Em fins de Novembro é enclausurado nos calabouços da PIDE no Porto. Ali permanece, sem direito a visitas, tratamento hospitalar, ler ou escrever. Isolado do mundo sem nada mais do que a companhia omnipresente da luz acesa. Todos os dias descia da “tarimba” e caminhava, passos sem fim num espaço de três metros por dois. “Percorria aquilo de trás para a frente”, contando as vezes que fazia essa “viagem”. “Era a única forma de combater o stress”.

Recorda vividamente a espinha de bacalhau que lhe foi servida na cela na véspera de Natal, o balde dos dejectos, “as frias paredes de pedra, de branco sujo, com uma janela minúscula, gradeada, quase junto ao tecto”. Longe da vista, mas perto dos ouvidos. “Era angustiante. Ouvia o ruído dos carros, as pessoas a passarem na rua. Que dor era sentir o quotidiano das pessoas, indiferentes à minha presença naquela cela, à injustiça do meu cativeiro”.

A reminiscência é de José Augusto Nozes Pires (Jorge Pires), 62 anos, professor de Filosofia e Psicologia e membro da Assembleia Municipal de Torres Vedras. As suas palavras são ouvidas no Café Ceuta, “local de inúmeras conversas secretas até às tantas da manhã, sempre na mira dos bufos fascistas”, no âmbito da iniciativa «Encontros em lugares de Memória da Resistência», protagonizada pelo núcleo do Porto do movimento «Não Apaguem a Memória!». Trata-se de um movimento cívico que visa a preservação da memória histórica das lutas de resistência à ditadura, promovendo encontros em lugares emblemáticos dessa resistência.