Memória, poder e modernidade

Editorial de Nuno Pacheco do jornal Público no passado 27 de Julho.


Memória, poder e modernidade

Museus físicos, virtuais, roteiros históricos vivos, nada será de mais para preservar a memória e, com ela, “prevenir o futuro.” Assim o poder encare tal tarefa numa óptica de modernidade

Nuno Pacheco

“Para prevenir o futuro é preciso saber reconhecer a História”. A frase é de Jaime Gama e foi proferida há precisamente seis meses na Assembleia da República, a 26 de Janeiro, na sessão solene onde foi recordado o diplomata português Aristides de Sousa Mendes (1885-1954), que salvou a vida a dezenas de milhares de judeus na II Guerra Mundial quando era cônsul em Bordéus. A mesma frase, com idêntico sentido, pode aplicar-se agora às iniciativas do movimento Não Apaguem a Memória, que ontem entregou ao mesmo Jaime Gama uma petição apelando aos “poderes públicos, a todos os cidadãos e organizações, para que assegurem a preservação duradoura e a divulgação da memória colectiva dos combates pela democracia e pela liberdade travados durante a resistência ao Estado Novo.” Não é pedir muito. Mais de trinta anos passados sobre o 25 de Abril e o retomar, em novos moldes, da república interrompida com a ditadura imposta pelo Estado Novo, é mais que tempo de passar dos ensaios historiográficos, políticos e sociológicos (essenciais à preservação dessa memória) para algo mais didáctico e claro para as novas gerações. Na Europa, já aqui se escreveu por mais de uma vez, há exemplos de museus da resistência ao nazismo que são verdadeiros exemplos de comunicação moderna, apreensíveis por todos, sobretudo pelos que não viveram os episódios ali tratados com rigor histórico e factual.

Por isso, a criação de um roteiro da memória da resistência à ditadura, permitindo conhecer os espaços onde ela exercia o seu mais secreto poder – as prisões de Caxias e do Aljube, o Tribunal da Boa Hora, as antigas sedes da PIDE de Lisboa e Porto, etc. – aliada a núcleos museológicos fará todo o sentido se não quisermos que a memória do que, outrora, foi a vida e o combate de muitos portugueses fique confinada ao silêncio das bibliotecas e a núcleos selectos de historiadores. Há, no horizonte, bons sinais neste sentido: a possibilidade de criação de um memorial na antiga sede lisboeta da PIDE (100 metros quadrados no que virá a ser um condomínio de luxo), a eventual criação de espaços museológicos no Aljube (em análise pelo Ministério da Justiça) ou na antiga sede da PIDE do Porto, actual Museu Militar já em trânsito para Gaia (existem negociações com o Estado-Maior do Exército nesse sentido) ou a abertura da Assembleia da República à discussão do tema para um eventual envolvimento das instituições do Estado em tais projectos. Mas é bom que não repousemos sobre os “bons sinais”. Porque há sempre o perigo de ver tal iniciativa como uma teimosia de velhos antifascistas e resistentes, a quem é preciso ir dizendo que sim para não ferir susceptibilidades, sem que outro empenho de maior esteja nas mentes de quem decide ou governa. A melhor maneira de afastar tal perigo é tomar esta tarefa como obrigação de toda a sociedade para com as novas gerações e também para com a história. Museus físicos, virtuais, roteiros históricos vivos, nada será de mais para preservar (e não ignorar, que é o pior dos males) a memória e, com ela, “prevenir o futuro.” Assim o poder aceite encarar tal tarefa numa óptica de modernidade.