António Borges Coelho na homenagem aos Tarrafalistas

Intervenção de António Borges Coelho, que foi o orador convidado pela URAP, entidade organizadora da homenagem aos Tarrafalistas realizada no Cemitério do Alto de S. João, em 29 de Outubro.


MINHAS SENHORAS E MEUS SENHORES!

Canto aqueles que caíram
Os que deitados à terra
Já estão nascendo no trigo (…)

(Rafael Alberti)

Viemos homenagear homens simples que veneramos. Muitos dos seus nomes entraram no imaginário colectivo: Bento Gonçalves, Mário Castelhano e tantos outros. Direi retomando o poeta Rafael Alberti na evocação dos mártires da Espanha republicana: “A quem nomearei primeiro? / Ninguém aqui é segundo / quando o aço é de aço.” Todos os que resistiram à brutalidade e à infâmia merecem o primeiro lugar.

Viemos homenagear homens comuns, operários, marinheiros, intelectuais. Viemos prestar homenagem aos marinheiros do “Afonso de Albuquerque”, do “Dão, do “Bartolomeu Dias” que ousaram levantar-se contra a ditadura; aos operários da Marinha Grande que tomaram a vila em protesto contra a ilegalização dos sindicatos livres; e a todos aqueles que vieram da luta legal e clandestina contra o fascismo e pela liberdade.

Eram comunistas, anarquistas, democratas, homens que se orgulhavam dos seus ideais e por eles arriscavam a vida. Acreditavam na justeza da sua causa e que a história a tinha designado como vencedora.

Me feriram golpearam
Até a morte me deram
Nunca nunca me dobraram.

Os homens que hoje homenageamos desembarcaram do navio “Loanda” no dia 29 de Outubro de 1936 na Achada Grande do Tarrafal, ilha de Santiago de Cabo Verde. Eram 158 presos políticos. Inauguravam o Campo de Concentração do Tarrafal, concebido segundo o modelo nazi. Campo da Morte Lenta lhe chamaram.
“Daqui ninguém sai com vida. Vieram para morrer”.

O campo erguia-se num areal encravado entre os montes e o mar, sujeito a altas temperaturas e ao flagelo dos mosquitos. Não havia água nem árvores mas vento e pântanos na época das chuvas. O recinto prisional, cercado por arame farpado, ocupava um rectângulo de cento e cinquenta metros de largo por duzentos de comprido. Dentro doze barracas de lona, que o sol e a chuva rapidamente apodreceram, aguardavam os prisioneiros.
Mais tarde abriram uma vala a toda a volta com três metros de profundidade. A terra retirada serviu para erguer um talude por onde corria a vereda permanentemente patrulhada pelos soldados da guarda. Em cada um dos quatro cantos, uma rotunda em cimento, que servia de trincheira e, se necessário, de ninho de metralhadoras. Dois torreões redondos flanqueavam a entrada e a passagem para a ponte sobre a vala e para a última porta de arame farpado.
Os presos políticos estavam agora completamente isolados do mundo exterior. As imagens legais que dele chegavam eram as das sentinelas com as suas armas, as dos guardas e as do director do campo e dos carrascos da PVDE.

Sujeitaram-nos a trabalhos forçados sem outro sentido senão o da humilhação e o da destruição física. Inventaram a “Frigideira”, uma caixa de cimento de nove metros quadrados onde o ar e a luz entravam por buracos abertos na porta. Por vezes a sede era tanta que passavam a língua pelas paredes para absorver as gotas da respiração. Gabriel Pedro viveu naquele inferno cento e cinquenta e três dias.

Cedo chegaram as doenças e a morte. A febre devorava os corpos. Houve momentos em que na barraca da enfermaria mortos e vivos se confundiam. Deram-lhes choques eléctricos nos pés. O marinheiro João Faria Borda reagiu e sobreviveu depois de dezasseis anos de presídio.

O Campo da Morte não existia só para dobrar e liquidar os presos mas para ameaçar toda e qualquer resistência no país. “Sabem o que vos espera.”
Pelo Campo passaram até 1954 trezentos e quarenta presos políticos, trinta e dois dos quais estão aqui sepultados. Morreram na força da vida: dois contavam vinte e quatro anos, os mais entre vinte e quatro e quarenta anos. Em 1978 uma multidão, calculada em 200 000 pessoas, acompanhou os seus restos mortais até este mausoléu e memorial.

Certamente, aos presos não faltaram horas e horas de angústia e desespero. Não estavam no palco. Ninguém via como sofriam e aguentavam. Os olhos que os cercavam ressumavam ódio e procuravam todos os pretextos para a humilhação, os espancamentos e as torturas. Mas muitos podiam subscrever, dia a dia, as palavras de Spartaco Fontano, fuzilado pelos nazis: “Querida Mãe”, “não culpe mais ninguém pela minha morte, eu mesmo escolhi o meu destino”.

Vivia-se então o tempo de Guernica, do odor a sangue e fezes que soprava das terras de Espanha –“Não passarão!”. Era o tempo das hordas nazis, da Gestapo, da PVDE e de outras polícias de repressão, tortura e morte.
À Guerra Civil e transnacional de Espanha, onde participaram voluntários de cinquenta países, sucedia a Segunda Guerra Mundial com o seu cortejo de horrores: 50 milhões de mortos, milhões de mutilados, campos de extermínio, fábricas, cidades e campos destruídos. Mas, por toda a parte, dos escombros brotava impetuosa a esperança de que no final viria um mundo melhor.
E quando chegou a Vitória, multidões em delírio inundaram no mundo as ruas e praças das cidades vencedoras; as ruas de Lisboa, do Porto, de Coimbra e das principais cidades de Portugal.
A liberdade estava já ali. Demorou vinte e nove anos, afinal.
Não podemos perder a liberdade. Olhai, como levou tempo a recuperá-la.

Em 1954 desactivaram o Campo de Concentração do Tarrafal. Do areal da morte saía então o último e único prisioneiro: Francisco Miguel Duarte. Sei que sofreu as piores humilhações, espancamentos, a tortura da estátua, vinte e três anos de prisão.
O Campo voltou a abrir entre 1963 e 1974. Para lá deportaram combatentes das ex-colónias portuguesas que lutavam pela independência política dos seus países.

É tempo de preservar a memória. Não permitamos que apaguem e destruam as marcas no Tarrafal, no Aljube, na sede da Pide, no Tribunal Plenário, em Caxias, na Pide do Porto, na Fortaleza de Angra, na Fortaleza de Peniche. Constituem um património indispensável para a pedagogia da liberdade e da democracia. Preservemo-lo para que os nossos filhos e os nossos netos digam connosco: NUNCA MAIS!

Viemos homenagear homens comuns que se tornaram heróis do seu tempo. E porquê, afinal? Porque ousaram desobedecer quando triunfavam os tambores da propaganda e do ódio.
Viemos homenageá-los porque, mais de dois milénios volvidos, repetiam o gesto de Antígona contra as leis injustas de Creonte.

Não apaguemos a memória. Ela guarda as marcas que nos orientam no labirinto do futuro. Ele não segue exactamente o curso que lhe apontamos com a nossa luta, mas a acção fica a pesar na balança das vontades e das correntes ideológicas, económicas e sociais que as condicionam.

Passaram setenta anos sobre o dia que hoje assinalamos. À Guerra Civil de Espanha, à Segunda Guerra Mundial, à euforia e generosidade da Vitória, sucedeu a Guerra Fria e Quente e o colapso do socialismo “real” nos países de Leste.
Falou-se então no fim da História, na harmonia que iria reinar entre os povos. Veio o mundo uni e pluripolar, aumentaram os conflitos, rebentaram novas e velhas guerras: a da Palestina, a do Afeganistão, a do Iraque.
Ao mesmo tempo cerceiam-se cada vez mais as liberdades e ouvem-se em todos os tons as vozes que intentam mais uma vez bloquear os caminhos abertos pelo iluminismo e as revoluções.

As invenções tecnológicas das últimas décadas alteraram profundamente o curso da vida. O mundo em que nos criámos desaparece. E um pouco por todo o lado, acompanhados pelos seus escravos mecânicos e pelos escravos e mentores electrónicos e digitais, os homens estão cada vez mais ricos de informação e mais sós. Falam cada vez menos e quase não sabem cantar.

No ar sobram as dúvidas e as interrogações:

Será que os homens estão mais livres e iguais?
Todos são nossos próximos ou alguns nem próximos nem iguais? Os outros são ou não o mesmo, a única Humanidade, criadora e fantástica, mas frágil e que tarda em perder os dentes do lobo?

Estamos a vencer a ignorância e a pobreza? Estamos a diminuir o fosso que separa os ricos dos pobres?

O poder e a verdade ainda nascem da força das armas?

Ao abrirmos as caixas da vida e da morte não estamos a pôr em causa a sobrevivência dos homens na Terra?

Viemos homenagear os bravos do Tarrafal. Queria terminar com palavras de esperança e um apelo: Gozemos este sol, a alegria, o dar das mãos e dos corpos. Mas tenho de voltar a Rafael Alberti:

Me ponho agora a cantar
Coplas que levam mais sangue
Do que areias leva o mar (…)

Lisboa, Cemitério do Alto de São João, 29 de Outubro de 2006