300 e tal pessoas na nossa festa! Um convívio muito fraterno, animado pela fanfarra, seguido de sessão/espetáculo extraordinariamente aplaudida, a par e passo.
Dois importantes discursos: de António Borges Coelho e Pedro Adão e Silva.
Aqui ficam:
A intervenção de abertura feita pela presidente do NAM, na abertura da sessão
O discurso de Antóno Borges Coelho (Historiador, fundador do NAM e sócio honorário do NAM)
O discurso de Pedro Adão e Silva ( politólogo, membro da direção do NAM).
Palavras da presidente do NAM na abertura da sessão
Amigas e amigos do Movimento Cívico Não Apaguem a Memoria e outros companheiros, aqui presentes:
Antes de darmos início à sessão, algumas palavrinhas de sentida gratidão que vos trago dos corpos gerentes que aqui represento.
Dirijo-me, em primeiro lugar, aos presentes neste espaço, que acorreram deste modo tão expressivo ao nosso convite. A vossa adesão a este evento é um estímulo para as actividades que pretendemos levar a cabo, com vista à preservação e à divulgação da memória coletiva dos combates pela democracia e pela liberdade, travados antes do 25 de Abril. Contem connosco, que nós contamos convosco para que não se apague a memória. Obrigada.
Agradecemos à Direção da Academia Recreativa de Santo Amaro ter-nos acolhido nesta casa, e tornado possível este espetáculo. Particularmente, ao Director e equipa técica do Teatro, pelo apoio que nos deram, e com a disponibilidade que era essencial para vos oferecermos uma sessão condigna.
Por fim, agradecemos a todos os amigos e amigas do nosso Movimento que, desde há meses, com prejuízo das suas vidas pessoais, despenderam dias esforçados no trabalho anónimo dos bastidores deste evento.
Para todos, um enorme e fraterno abraço.
Amanhã, dia Cinco de Outubro, o Movimento NÃO APAGUEM A MEMÓRIA comemora 7 anos de luta. Uma luta como movimento cívico nascido da sociedade civil, para fazer perdurar a memória da resistência à ditadura do “Estado Novo” – Resistência que foi um dos pilares determinantes do regime democrático em que vivemos – esta é, pois a nossa FESTA, a FESTA DO «MOVIMENTO NÃO APAGUEM A MEMÓRIA».
Estamos aqui reunidos, na véspera de um 5 de Outubro que, tudo indica, será o último com feriado nacional. Contra ventos e marés, persistimos, teimosamente, em não sermos cúmplices de um apagamento da memória da IMPLANTAÇÃO DA REPÚBLICA. Celebramo-la, pois, em Lisboa, este ano, em festa. Numa festa popular, de entrada livre. Uma comemoração longe dos poderes públicos instituídos, que teve início num ambiente alegre de convívio e solidariedade e prossegue numa sessão em que se respira história, cidadania e cultura. É a FESTA da REPÚBLICA.
Propomo-nos zelar pela continuidade geracional do cumprimento do dever de memória. E foi com essa preocupação que optámos por dedicar, no programa que aqui vos trazemos, uma especial atenção à participação de uma orquestra juvenil, que é a face visível de um projecto educacional exemplar, de quem não renega os valores da República.
Nesta iniciativa, quisemos resgatar da memória do passado, para o palco da Academia de Santo Amaro, alguns daqueles que, durante o fascimo, contribuíram para dignificar a República, pugnando pela Cultura e protagonizando combates pela Democracia e pela Liberdade.
«A República Portuguesa há-de ser revolucionária, progressiva e profundamente democrática e, mal dela, se o não for!» – escreveu uma mulher, a histórica feminista republicana Ana de Castro Osório, em 1910, um mês antes da Implantação da República. Escolhemos, para ser apresentadora desta sessão, uma mulher que honra a sua memória. Uma jovem, já conhecida pela sua intervenção cívica e pelos direitos de cidadania que reivindica para a sua geração, com a tenacidade que muitos milhares de portugueses lhe reconhecem. É Myriam Zaluar.
(Helena Pato)
Não Apagarão a Memória
(A ser publicado no número de Inverno da Seara Nova (nº 1722), a sair nos finais do ano)
Aproxima-se mais um inverno. Traz fome e luta no ventre. Luta cidadã em defesa da vida e da dignidade. Fustigam-nos com o desemprego, o trabalho precário, a asfixia dos impostos, o prolongamento da jornada de trabalho, o roubo dos salários e das reformas, os custos da casa, da educação, da saúde. Para muitos, falta tudo, sobra a fome.
Para sair da crise, dizem os mandantes, tendes de ficar mais pobres. Empurram os jovens para fora. Lá fora, em paraísos fiscais, engordam os especuladores. No país interior, o abandono e o fogo isolam e apressam a morte dos velhos, sós, entre ruínas, nos restos das casas de adobe ou de granito.
Em Setembro, multidões de portugueses saíram à rua. “Basta!” “Queremos as nossas vidas de volta!” “Em defesa dos nossos filhos e netos!” “Rua!” É neste contexto que hoje nos reunimos na Academia do Alto de Santo Amaro para celebrar a República.
A vida marca a nossa memória, os nossos corpos, o pensamento, as instituições sociais. A memória resiste em tudo o que a mão e a mente do homem criaram: a fala, a ideia, um afeto, um vaso, um colar, restos de cozinha, ferramentas, um templo, um livro, uma estátua, um quadro, uma partitura.
A memória sustenta os nossos gestos, alimenta o sentir, o entender e o agir dos indivíduos e dos povos. Na resposta necessária aos estímulos do dia, a memória continuamente se renova e organiza. Alguns acontecimentos perdem-se na penumbra, outros ganham novo relevo. Por vezes, vestem as roupagens do mito.
Mesmo nesta era tecnológica, a vida dos homens decorre no quadro dos ciclos da Natureza. Celebramos os dias fastos. Reativamos a memória, celebrando. Celebrando as estações, o nascimento, o amor, a amizade, os dias da libertação, individual e coletiva.
“Mataram o dr. Bombarda. … Toda a cidade republicana se transformou num vulcão. À uma hora da noite o Machado Santos, à frente dum bando de populares, atira-se ao portão de Infantaria 16”, escreve Raúl Brandão nas suas Memórias ao evocar os acontecimentos de 4 e 5 de Outubro de 1910.
“Toda a noite ouço o estampido do canhão que por vezes chega ao auge, para depois cair sobre a cidade um silêncio mortal, um silêncio pior. Que se passa? Distingo o assobio das granadas e de, quando em quando, um despedaçar de beiral que cai à rua. E isto dura até à madrugada. De manhã as tropas do Rossio rendem-se e os marinheiros desembarcam na Alfândega. Às oito e meia está proclamada a República. Passa aqui na rua de São Mamede um resto de Caçadores 5, soldados exaustos, entre populares que os aclamam.”
Celebramos a implantação da República nos dias 4 e 5 de Outubro de 1910. O povo comum assaltou os quartéis para abrir um novo rumo empunhando como primeiras armas as próprias vidas. Aquelas horas de luta e sacrifício ficaram como cicatrizes indeléveis no corpo do nosso imaginário, resistiram e resistem aos apagadores da memória das vitórias populares. Durante quase cinquenta anos, estes apagadores impediram que o ensino da História abrisse as portas da Revolução Francesa. Ficavam cegos com as Luzes. Impunham as Trevas.
Nesse tempo os de cima mandavam a polícia carregar contra os que, junto da estátua de António José de Almeida, celebravam a República e gritavam Liberdade. Perseguiam tudo o que mexia fora do sistema: os trabalhadores, os estudantes, todos os que se não conformavam. Em frente da estátua da Avenida da Liberdade, comemorávamos o fim da Primeira Guerra Mundial e defendíamos a paz entre os povos. Vinha a polícia. Dali nos perseguiam até ao cemitério do Alto de São João onde se homenageavam os militares mortos no conflito. As manifestações do 1º de Maio, na Avenida da Liberdade e no Rossio, eram dispersas a tiro com mortos e feridos. Até que Abril nos restituiu a liberdade roubada.
Hoje manifestamo-nos em defesa da dignidade e do futuro dos nossos filhos e netos, mas o trabalho dos apagadores da memória e do branqueamento dos crimes do passado prossegue. Na comunicação social, nos livros, no abandono das pedras que testemunharam o sacrifício e o sofrimento de gerações. Em Lisboa, a sede da Pide deu lugar a um hotel de luxo, as instalações da pide no Porto, na rua do Heroísmo, junto ao cemitério do Prado do Repouso, foram descaraterizadas.
Nestes sete anos de vida, o Movimento não apaguem a Memória, veio lembrar, sobretudo às novas gerações, o sofrimento e a luta daqueles que viveram nos anos sombrios da censura, da tortura, do Tarrafal, de Angra do Heroísmo, do Aljube, de Caxias, da Rua do Heroísmo no Porto, de Peniche, da emigração em massa, da Guerra Colonial, da miséria, da ignorância e do pé descalço.
As revoluções não abrem a porta do paraíso. O seu triunfo alimenta-se dos corpos e de vidas despedaçadas. No dia da vitória o céu toma o azul mais límpido e os vencedores ouvem, por todo o lado, o cântico dos pássaros. A fraternidade comove-nos até às lágrimas. Somos dádiva. O corpo social arde em febre até que o campo se defina.
Nesta evocação da Primeira República queria lembrar os populares e militares que resistiram na Rotunda até à vitória. E de um modo particular os fundadores e primeiros colaboradores da revista Seara Nova. O seu primeiro número saiu em 15 de Outubro de 1921. Vai fazer 91 anos.
Entre os seareiros da Primeira República contam-se alguns dos mais destacados intelectuais da cultura portuguesa do século XX, vítimas, também eles, da censura, da prisão e dos apagadores da memória: António Sérgio, Aquilino Ribeiro, Raúl Proença, Jaime Cortesão, Bento de Jesus Caraça, Raúl Brandão, José Rodrigues Miguéis, Manuel Rodrigues Lapa, Irene Lisboa, Azevedo Gomes, Câmara Reis, Fernando Lopes Graça, Agostinho da Silva. E outros.
Pretendiam renovar a mentalidade dos governantes, criar uma opinião pública nacional, opor-se ao espírito de rapina das oligarquias dominantes e ao egoísmo dos grupos, classes e partidos, definir a grande causa da verdadeira revolução, contribuir para a união de todas as pátrias para que não voltassem as guerras fratricidas como fora a Primeira Guerra Mundial, a Grande Guerra de 1914-1918.
E hoje? Como reagiriam face à luta que travamos em defesa do estado social, pelo desenvolvimento de uma sociedade mais igual, pela dignidade do nosso povo?
Creio que Aquilino Ribeiro diria: “quando os Lobos uivam”, temos de sair à rua e enfrentá-los. Raúl Proença vem acompanhado por Câmara Reis. “Eliminados todos os abusos, todas as falsificações e todos os sofismas, Liberdade, Igualdade, Fraternidade, por maiores crimes que em nome delas tenham sido cometidos, são ainda as três estrelas máximas que alumiam o firmamento da Razão humana.” Câmara Reis, o seareiro que mais tempo se manteve na direção da Seara, concorda. António Sérgio problematiza e insiste que é necessário investir a fundo na educação. A cultura e a crítica fazem os cidadãos. Bento de Jesus Caraça estende a educação e a cultura ao povo operário. “As ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que há de melhor na vida dos homens e dos povos.” Temos de nos organizar na diferença e assentar bem os pés na terra. Até o pensamento matemático se desenvolve na resposta aos desafios que a Humanidade enfrenta na sua marcha irregular e acidentada. Jaime Cortesão enaltece o poder local. Se pudemos vencer o Atlântico, chegar à Índia e lançar as bases do Brasil, não podemos sair da crise e sustentar uma sociedade mais fraterna? José Rodrigues Miguéis traz consigo milhares de emigrantes, Gente de Terceira Classe, embarcados a granel nos porões dos transatlânticos. Manuel Rodrigues Lapa levanta um cartaz: não voltam a fazer de nós os “cafres da Europa.” Agostinho da Silva olha para o palácio e exclama: “Isto é uma gatunagem.” Fernando Lopes Graça de braço dado com José Gomes Ferreira e Carlos de Oliveira, cantam: “Terra pátria serás nossa, Mãe pobre de gente pobre!”
Na década de 60, a Seara Nova recebeu um novo impulso animando o debate político e ideológico. Nas vésperas do 25 de Abril, na direção de Rogério Fernandes, Augusto Abelaira e Manuel Rodrigues Lapa, a revista chegou a organizar 18 000 assinantes e a imprimir uns 30 000 exemplares. Nos últimos anos, o seu diretor Ulpiano do Nascimento, que a morte nos levou neste verão, e uma equipa devotada de seareiros aguentam o milagre de manter a Seara num meio editorial dominado pelas grandes empresas de comunicação. Bem hajam!
São muito duros os tempos que vivemos. Não há paz entre as oliveiras. Ao longo dos anos, a Seara Nova indicou-nos um caminho quando abriu as suas páginas à colaboração e ao debate dos que, diferentes, lutavam pelo derrube da ditadura.
Unamo-nos, diferentes e iguais na defesa dum programa mínimo que está bem claro no nosso horizonte. Os dedos das mãos são desiguais e até contrários. No outono e no inverno que se aproxima, se nos unirmos como os dedos das nossas mãos, havemos de encontrar a estrada da esperança libertadora.
António Borges Coelho
4.10.1212
Memória do Futuro
O historiador Anthony D. Smith escreveu que “sem memória não há identidade; sem identidade, não há nação”. Vale a pena refletir sobre a asserção, num dia em que se celebra pela última vez o feriado do 5 de Outubro, data da implantação da República, e quando, daqui a um par de meses, também o 1º de Dezembro, dia da nossa independência, deixará de ser feriado nacional.
Como acontece com todas as formas de identificação (à cabeça a família, mas, também, a religião), a pertença a uma nação implica a partilha de referências a um passado comum, através do qual se constrói uma identidade. A memória colectiva é o cimento da vida em comunidade e, numa era em que tudo se dispersa e parece ruir, a nação é ainda um lugar privilegiado de identificação. Um porto de abrigo, mas, também, de partida.
Há, contudo, em torno da comemoração das efemérides políticas um discurso recorrente, que sugere que são resquícios de um passado distante, que pouco diz aos portugueses de hoje. Nada de mais errado. Mesmo que a componente popular dos festejos se vá diluindo – o que é natural –, essa não é razão para suprimir a celebração institucional do que é a memória territorializada de uma ‘comunidade imaginada’, na feliz expressão de Benedict Anderson. Uma nação, convém recordar, não só não existe ‘em si’, como é socialmente construída e alicerça-se não num conjunto de relações individuais, mas numa meta-memória, assente em afinidades políticas que não podem deixar de ser invocadas – sob pena de se extinguirem, arrastando com elas a própria comunidade política.
Ao suprimir os feriados do 5 de Outubro e do 1º de Dezembro, o Governo revela um misto de leviandade e irresponsabilidade, sugerindo, uma vez mais, que está convicto de que tudo é reconstruível a partir da vontade política do momento, num experimentalismo que só pode correr mal. Mal ou bem, hoje com uma distância simbólica crescente, os feriados que celebram o regime e a independência são uma forma de sincronizar o nosso passado colectivo com o presente, construindo uma memória coletiva, que é um requisito para existirmos como nação no futuro.
Convém, contudo, não desvalorizar que o fim da celebração da República tem também um efeito de ocultação do que é, ou deveria ser, o chão comum em que assenta o nosso regime e a nossa comunidade. A República, por um lado, como representação pluralista e livre dos cidadãos, e quadro institucional no qual se constrói a nação; por outro, como regime onde prevalece o primado da política como resposta à questão económica e social e não o contrário.
Esta crise tem sido, de facto, uma oportunidade para brincar com o fogo, e como descobriremos, infelizmente, à degradação económica e social seguir-se-á a decadência política e institucional, num contexto em que os laços que nos uniram foram sendo paulatinamente destruídos. Se não nos celebramos como comunidade política independente, corremos o risco de o deixar de ser.
(Pedro Adão e Silva discursou a partir deste texto, não havendo registo da totalidade da sua intervenção)