Dois seminários sobre ‘Censura e Liberdade de Expressão’vão decorrer já a partir do mês de abril, promovidos pelo Movimento não Apaguem a Memória (NAM). O primeiro organizado em conjunto com o Centro de Investigação de Media e Jornalismo (CIMJ) e o Projecto Censura ao Cinema e ao Teatro, decorrerá no dia 23 de abril entre as 15 e as 18 horas, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; o segundo acontecerá a 15 de maio, das 10 às 13 horas, na Universidade Lusófona, em Lisboa, e resulta de uma parceira entre o NAM e a VISÃO, com organização a cargo do curso de Jornalismo e Comunicação daquele estabelecimento de ensino. Além destas iniciativas, o NAM tem na calha mais uma tertúlia que decorrerá na Casa de Cultura de Coimbra, a 18 de maio, pelas 15 horas, e que contará com a presença de destacados democratas de Coimbra, com um passado ligado ao combate antifascista.
Objetos com história
Na última tertúlia, que decorreu, como habitualmente, no café Vá-Vá no passado dia 16 de março, a surpresa foi uma “guia de entrega”
Tratou-se da “guia de entrega”, por militares, de Américo Tomás, Marcello Caetano e Moreira Baptista aos representantes, na Madeira, do Movimento das Forças Armadas (MFA),. O documento foi apresentado pelo almirante Martins Guerreiro. A detenção e a partida para o exílio, do Presidente da República, do chefe do Governo e do ministro do Interior, em funções nos últimos tempos da ditadura, na sequência da revolução de 25 de Abril de 1974, marcaram o fim definitivo do antigo regime, o que justifica a relevância histórica do “objeto” mostrado por Martins Guerreiro, um dos mais importantes membros do MFA, às dezenas de pessoas que enchiam o mítico café da Avenida de Roma, em Lisboa.
A presidente da direção do NAM, Helena Pato, tinha desafiado os ativistas do movimento cívico a levarem para a tertúlia, objetos a que atribuíssem um especial significado, no âmbito da luta contra o fascismo. Além da “guia de entrega”, apareceram no Vá-Vá, entre outros, um lápis da Censura, um romance do capitão Henrique Galvão, um peão de xadrez esculpido na prisão, um quadro a óleo que a PIDE não deixou terminar e até um baralho de cartas feito na cadeia, com a prata dos maços de tabaco.
Helena Pato deu as boas-vindas a todos os presentes e fez questão de frisar a importância das tertúlias, num momento em que, como no passado, “estamos sequestrados por um bando de malfeitores”, afirmou.
A moderação do encontro ficou a cargo de Luísa Tomé de Oliveira. A historiadora e professora do ISCTE sublinhou a relevância do tema, explicando que “os objetos também têm biografia”. E observou: “Foram conservados, manuseados e vividos, e podem traduzir-se no cruzamento de muitas pessoas.”
Do lote de convidados, faziam parte Alípio de Freitas, Artur Pinto, Daniel Ricardo e Helena Neves (jornalistas), Joana Lopes (antigo quadro da IBM), Mário de Carvalho e Joana Ruas (escritores), Luísa Teotónio Pereira (membro da direcção do Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral), Maria Emília Brederode Santos (especialista em Educação), o almirante Martins Guerreiro e Rita Veloso (filha do antigo dirigente comunista, Ângelo Veloso).
No entanto, acabaram por intervir mais oradores do que estes onze, inicialmente escalados para o debate, como foi o caso de Maria Manuel Calvet Ricardo, que mostrou um quadro a óleo, da autoria do pai, o pedagogo Manuel Maria Calvet de Magalhães, antigo diretor da Escola Francisco de Arruda, que, enquanto pintor, usou o nome de Magalhães Filho. O quadro representa um operário a colher uma maça de uma árvore, mas uma das suas mãos ficou por pintar. É que, segundo a filha do artista, o ateliê onde o pai e outros jovens colegas preparavam as obras que iriam apresentar numa exposição coletiva, foi invadido pela PIDE, tendo os agentes da polícia política indicado os quadros que não poderiam ser expostos. E um dos banidos foi, precisamente, o do “operário”. Magalhães Filho interrompeu o trabalho e, desiludido, não o voltou a pintar. O quadro inacabado é uma das raras provas de que a repressão censória também se abatia sobre as artes plásticas.
Artur Pinto levou consigo o livro Vagô – Romance dos bichos do mato, de Henrique Galvão. Sobre a obra, referiu que tinha sido publicada na clandestinidade, em 1954: “Muitos dos exemplares estavam guardados numa mala, em casa dos meus pais”, disse o antigo ativista estudantil. Na sequência das eleições presidenciais de 1958, marcadas pela candidatura de Humberto Delgado a Belém, e das perseguições políticas que se seguiram, “tiveram de desfazer-se dos livros”, lançando-os ao rio Tejo, perto de Alhandra. “Apenas restaram dois, daquela edição”, acrescentou.
Artur Pinto falou, a propósito, das diferenças existentes entre o Portugal daquela época e o atual: “Nós, jovens dos anos 50 e 60, eramos uns privilegiados, porque fomos dos pouquíssimos que tiveram acesso à educação”, disse o antigo dirigente associativo que ignorava, então, a realidade no interior do País, “à luz das candeias”, onde “mais de 45% da população vivia da agricultura, apenas 20% das mulheres trabalhavam e onde mais de 60% dos jovens eram analfabetos”.
O jornalista Daniel Ricardo que, à época do 25 de Abril, pertencia à chefia de redação de A Capital, desfiou as suas memórias a partir de um lápis azul, usado pelos censores para retalhar os textos da imprensa. Dois dias depois da Revolução, o jornalista enviou uma equipa de reportagem para acompanhar do assalto por populares à antiga sede da Censura, então já chamada Exame Prévio, situada na Rua da Misericórdia. No meio da confusão, em que documentos e móveis foram lançados das janelas do edifício para a rua, caiu aos pés do repórter o tal lápis azul que, na queda, ficou com o bico partido. O repórter ofereceu-o a Daniel Ricardo. Para o atual editor executivo da VISÃO, este lápis azul sem bico “simboliza aquele período revolucionário, em que o povo calou o bico à Censura”.
As vivências do tempo em que esteve preso, e dos amigos que conheceu na prisão de Peniche, e que o marcaram profundamente, foram as memórias partilhadas pelo escritor Mário de Carvalho. O autor de Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, entre outras publicações, falou do jogo de um xadrez, oferecido pelo pai, e do peão com que batia na parede da sua cela, passando mensagens codificadas aos presos seus vizinhos. E contou que numa das inspeções à cela, um dos guardas lhe confiscou aquela pequena peça. O xadrez ficou incompleto, mas não por muito tempo.
Emocionado, Mário de Carvalho recordou o momento em que o companheiro de cela, José Joaquim Velez, lhe ofereceu um peão igual, que esculpira num pedaço de cabo de vassoura, usando apenas uma faca, “desviada” da cozinha da prisão. “Nunca mais o voltei a ver, mas não me esqueço daquele pacato camponês alentejano”, concluiu.
Já Maria Emília Brederode Santos falou sobre a perspectiva das famílias dos presos políticos do regime, uma vez que o irmão, Fernando Brederode Santos, jornalista e então militante da Frente de Ação Popular (FAP), esteve encarcerado, durante meses, na cadeia de Peniche. Maria Emília e o clã ficaram alojados nas imediações, graças a um amigo da família que lhes cedeu a casa, “para ficarmos mais próximos do meu irmão”, explicou. E não escondeu a surpresa quando, nesse preciso momento, foi interrompida por Rita Veloso, filha do antigo dirigente do PCP, Ângelo Veloso: “Eu estive nessa casa! Foi aí que aprendi a atar os atacadores dos meus sapatos.” Maria Emília aproveitou, então, para revelar que a tal casa acabou por acolher outras famílias de presos políticos. “Algumas delas, provenientes de quadrantes políticos distintos do da minha própria família”, adiantou entre risos. “Além disso, era muito comum partilharmos boleias uns com os outros. Havia um espírito solidário, apesar das nossas diferenças ideológicas, que acho que se perdeu um bocadinho.”
Por fim, Rita Veloso mostrou as cartas que Ângelo Veloso escreveu a mãe, enquanto esteve preso na cadeia de Peniche, entre 1968 e 1974. Nunca as leu, disse, por respeito à intimidade dos pais. Além das missivas, a mais jovem participante no encontro mostrou um desenho feito por si, aos 7 anos, sobre a Revolução de Abril. Rita Veloso levou ainda consigo para o Vá Vá a permissão dada pelo pai, para sair do País, datada precisamente de 1974, que tinha descoberto horas antes do encontro promovido pelo NAM.
(da Revista Visão on-line)